Coincidiu nas últimas semanas a estreia da terceira temporada de “A Amiga Genial” (HBO MAX), baseada na mais famosa obra da escritora Elena Ferrante, com o centenário de nascimento do cineasta Pier Paolo Pasolini (1922-1975). A adaptação do livro “História de Quem Foge e de Quem Fica” reconstrói a Itália da virada dos anos 1960 para os 1970, a época da grande produção pasoliniana. Foi o período dos “anos de chumbo” italianos que produziu um milagre econômico e uma luta política, social e cultural sem precedentes.
“A Amiga Genial” segue a divisão da tetralogia napolitana de Elena Ferrante que encantou o mundo inteiro com as histórias de seis décadas das personagens Lenu e Lila. A série tem a garantia de qualidade com o roteiro assinado pela própria autora e a produção sob responsabilidade do cineasta Paolo Sorrentino (de “A Grande Beleza” e “A Mão de Deus”). As imagens expõem desde a pobreza numa periferia de Nápoles, no pós-Segunda Guerra Mundial, até as andanças de Lenu (as histórias de quem foge) pela Itália.
Um dos maiores achados da série foi a escolha das atrizes protagonistas que começaram as filmagens com 15 e 16 anos e estão se tornando adultas ao longo da adaptação. Elena Greco, a Lenu, é interpretada por Margherita Mazzucco, que capta bem os silêncios e as dores da sua personagem. Gaia Girace faz Lila Cerullo, a figura carregada de variados sentimentos e que explode nos momentos cruciais. A trama é a amizade, num movimento contínuo de aproximação e afastamento dessas duas moças/mulheres.
Na terceira temporada, Lenu é a escritora que começa a se projetar no mercado cultural da Itália, em plena rebelião do maio de 1968, e está prestes a se casar com um colega dos tempos de universidade. Por contraste, Lila é a história de quem ficou em Nápoles, trabalhando numa fábrica de salames. Para elas, o mundo fora de casa, longe da família, passa a ser um fator que move os acontecimentos da vida. É neste ponto que os eventos históricos se tornam elementos centrais de “A Amiga Genial”.
A série mostra o complexo enredo do final da década de 1960, quando a Itália mergulha numa guerra interna entre os saudosos do fascismo e os comunistas que entram nas fábricas. A luta política não é tanto a busca pela revolução socialista, mas sim a tentativa de barrar os novos fascistas. Em “A Amiga Genial”, existe um polo de personagens que são intelectualizados e se aproximam dos trabalhadores. Um outro polo é o grupo de pessoas, como Lila, que vive a realidade do chão da fábrica.
Lila expõe a “verdade” material de quem não tem para onde fugir, restando a permanência na situação do destino social reservado aos mais pobres. Por sua vez, Lenu faz parte das pessoas que vivem em trânsito, trafegam por várias classes sociais e são obstinadas em ter outra história pessoal —longe da pobreza, do embrutecimento e do machismo da periferia de Nápoles. E há a figura de Nino Sarratore (feito por Francesco Serpico), que se intromete na vida das protagonistas e se torna um fantasma.
Tempo dos vaga-lumes
Essa Itália de “A Amiga Genial” é o período que Pasolini chamou de “desaparecimento dos vaga-lumes”. Segundo ele, houve um país comunitário e não-capitalista que tinha muitos daqueles insetos emissores de luz. Mas a modernização, por meio de fábricas, cidades e máquinas, extinguiu os chamados pirilampos. Em fevereiro de 1975, o cineasta de “Teorema” e “Salò” publicou um clássico artigo (“O vazio do poder na Itália”) e usou a imagem do bichinho encantador das áreas rurais.
“No início dos anos 60, por causa da poluição do ar e principalmente, no campo, por causa da poluição da água (dos rios azuis e regos transparentes), os vaga-lumes começaram a desaparecer. O fenômeno foi instantâneo e fulminante. Em poucos anos não existiam mais vaga-lumes. (São agora uma lembrança, bastante dilacerante, do passado: e um homem de idade que tenha essa lembrança não pode reconhecer nos novos jovens sua própria juventude e, por isso, não pode mais ter belas saudades de antigamente)”, disse Pasolini.
O tempo sem pirilampos é a fase do “fascismo do consumo”, segundo Pasolini, que conjugou o espírito libertário e certa nostalgia do velha Itália. Seu país vivia num clima de quase guerra civil, sob o comando implacável de uma aliança que reuniu democratas-cristãos, socialistas, alguns comunistas e até o Vaticano. “Nesse universo, os ‘valores’ que contavam eram os mesmos que contavam para o fascismo: a Igreja, a pátria, a família, a obediência, a disciplina, a ordem, a poupança, a moralidade”, apontou Pasolini.
O diretor italiano concluiu que o desaparecimento dos vaga-lumes é o momento do “vazio político”. Trata-se do terreno ideal para florescer os fascismos de todas as espécies. Meses depois de publicar seu artigo, Pasolini foi brutalmente morto por um michê, durante suas incursões pelo que estava proibido pela nova moral dos italianos. É esse o pano de fundo que Elena Ferrante traz na “História de Quem Foge e de Quem Fica” — adaptada de forma magistral na terceira temporada de “A Amiga Genial”.