Às vezes, tudo do que a gente precisa é de um filme que nos convença, sem muito esforço, de que a vida vale mesmo a pena. Nada de lições de moral altamente elaboradas, tampouco sequências que reproduzem a animosidade do mundo, um lugar dia a dia mais inóspito, a que os mais sensíveis custam a se adaptar e no qual os mais fortes sentem que estão a uma polegada do colapso. Um filme com um protagonista capaz de envolver o espectador mesmo que não diga uma palavra, que deixa seu carisma e suas adoráveis feições fazerem o trabalho de capturar todos os olhares.
“O Resgate de Ruby” (2022) é precisamente esse filme e, apesar do correto desempenho de Grant Gustin, com nuances bem delimitadas — da frustração à glória, da revolta à placidez espiritual —, a personagem central do trabalho da diretora Katt Shea é mesmo a cadela a que se refere o título. Cruzamento de pastor australiano e border collie, Ruby (ou Bear por trás das câmeras), é tão esperta quanto indócil, e, não, não se está falando de nenhuma fera aqui. O problema de Ruby talvez seja o excesso de amor, que ela não consegue demonstrar adequadamente.
O roteiro de Karen Janszen trabalha com muito vagar toda a complexidade que a figura de Ruby encerra, com direito a revelações na reta final da história. O tipo vivido por Gustin, que divide o estrelato do longa com Bear, não fica atrás quando o assunto é problema, e, em particular, problemas emocionais. Apesar da dislexia e hiperatividade que sempre o obrigaram a se dedicar e a se concentrar dez vezes mais que os outros, Daniel O’Neil conseguiu tornar-se um policial na cidadezinha bucólica em que mora com a mulher, Melissa, de Kaylah Zander, e o filho do casal. Mesmo sabendo o que pensa Matt, de Scott Wolf, seu superior na corporação, sobre sua meta de integrar o esquadrão K-9, de resgate e identificação de restos mortais com cães-farejadores, O’Neil, não obstante já estar na nona tentativa, continua obstinado. O problema é que desta vez se lhe impõem novos desafios. Além de ser sua última candidatura ao posto, por um critério etário, o policial não pode mais contar com o departamento, que não dispõe de mais dez mil dólares para importar da Europa um cão cuja raça atenda aos requisitos do programa de treinagem. E é aí que Ruby entra com as quatro patas em sua vida. O’Neil recorre ao abrigo coordenado por Pat Inman, papel de Camille Sullivan, e por não encontrar o pastor alemão que procurava — e não querer correr o risco de sepultar de vez o grande sonho de sua vida —, acaba levando Ruby para casa.
Recrutador e recruta se mostram muito mais parecidos do que O’Neil gostaria. Indomável, Ruby, malgrado muito inteligente, parece incapaz de obedecer a comandos simples, prefere fazer suas necessidades no tapete da sala, não dorme fora do quarto do tutor sem que ele esteja junto e não aceita qualquer recompensa para as raras vezes em que se decide por atender a uma ordem. À custa de muita insistência, dedicação, espirituosidade e, por óbvio, afeto — além de algumas salsichas —, o ímpeto furioso de Ruby vai sendo domesticado, o que nem o melhor adestrador conseguiria, e em tão pouco tempo. Como se trata de cinema, a mascote leva o tempo exato entre o ingresso na nova família e as provas ministradas por Matt, com um O’Neill seguro e orgulhoso de sua cadelinha. Como se trata de uma história real, o cão, que deve sua vida ao resgate pela equipe do abrigo, quase volta à estaca zero, vítima da desconfiança do dono, um momento de tensão que quebra a linearidade demasiada de “O Resgate de Ruby” na hora certa.
Por pouco O’Neil não coloca tudo a perder — seu sonho, sua reputação, sua carreira, Ruby —, mas como se estivessem mesmo predestinados a fazer parte da vida um do outro, a cachorra volta, e o espectador, a essa altura completamente arrebatado pela fofura de Bear, respira aliviado. Quem não tem tempo para respirar é a própria Ruby, imediatamente requisitada para sua primeira missão de resgate, tão bem-sucedida que resulta numa promoção para seu comandante. Para espanto dos mais puristas, não se menciona nenhuma recompensa para Ruby. Eleita o cão de busca de 2018, ao longo de uma década na polícia, essa vira-lata cheia de personalidade tem salvado pessoas em desastres naturais e ajudado no esclarecimento de delitos como homicídios e latrocínios, sempre ao lado de Daniel O’Neil. Tão ingênua e pura quanto a vida e o cinema também poderiam ser, ao menos de vez em quando.
Filme: O Resgate de Ruby
Direção: Katt Shea
Ano: 2022
Gênero: Biografia/Drama
Nota: 9/10