Minissérie da Netflix para quem gostou de La Casa de Papel

Minissérie da Netflix para quem gostou de La Casa de Papel

Há histórias que, realmente, só a vida consegue escrever, e dessas, existem as que só acontecem no Brasil. Quem poderia acreditar que uma quadrilha razoavelmente organizada, mas um tanto mambembe, composta por bandidos à primeira vista meio pés-de-chinelo, teria a audácia de levar a cabo um crime que mais parece uma operação de guerra? Pois isso aconteceu, claro, no Brasil, mais precisamente em Fortaleza, capital do Ceará. A proeza de 34 homens que cavaram um túnel de 75 metros, dotado de rede elétrica, ventilação e linha telefônica, deixou a Polícia Federal brasileira incrédula, escandalizou toda a sociedade e, de quebra, foi parar no noticiário de jornais do mundo todo. Não sem motivo: na ação, o bando conseguiu roubar — ou furtar, de acordo com o jargão técnico — 164,5 milhões de reais em cédulas de cinquenta depois de três meses de escavações, de maio a 8 de agosto de 2005. Nunca se disparou um tiro, ninguém presenciou nada de estranho e em chegando ao caixa-forte do Banco Central em Fortaleza, os ladrões permaneceram no edifício por cerca de onze horas sem que os sensores de movimento fossem acionados, deixando como rastro apenas um buraco de sessenta centímetros de diâmetro. Para que a presença de tanta gente não despertasse suspeita, foi usada uma casa, que funcionou como uma empresa que vendia grama sintética, uma fachada verossímil quanto a explicar os sacos e mais sacos de terra que saíam do imóvel. O dinheiro foi encaminhado para três destinos, entre os quais o bairro do Mondubim, na periferia de Fortaleza.

“3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central” — uma alusão ao peso do dinheiro, 3,5 toneladas, transportadas em três veículos com uma tonelada cada um — se aprofunda numa história bem contada em “Assalto ao Banco Central” (2011), dirigido por Marcos Paulo (1951-2012). Usando linguagem eminentemente jornalística, com passagens encenadas por atores anônimos, o docudrama do diretor e roteirista Daniel Billio, supervisionado pelo diretor-geral Rodrigo Astiz, estreia onze anos depois do filme de Marcos Paulo e arrasa de vez com qualquer chance de mistificação, tanto no que se refere aos criminosos como gângsteres extremamente preparados, como no que diz respeito à máxima de que, aqui no Brasil, quem rouba milhão tem cem anos de perdão.

Em “O Crime”, o primeiro dos três episódios da série, Billio relembra detalhes do crime e das investigações, que se estenderam por quatro anos e desaguaram no indiciamento de 129 pessoas em delitos como furto, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Foram ouvidas aproximadamente 500 testemunhas, as penas dos condenados somaram 2.452 anos de prisão em primeira instância, mas decerto o grande trunfo da PF foi ter desbaratado uma rede complexa, já preparada para invadir por baixo do chão cofres de outras unidades do BC em todo o Brasil, além do Paraguai. Em Porto Alegre, agentes da corporação conseguiram deter um bando especializado em abrir passagens subterrâneas. Nesse caso, os ladrões já haviam cavado 78 metros, mas eram observados de perto pelos policiais.

O capítulo seguinte, “A Caçada”, apresenta a saga de homens abnegados, como Nicodemos, o Nico, e Moicano, cujas identidades são preservadas por ainda estarem na ativa. Os dois foram peças importantes, em dada altura de cada uma das muitas fases da operação, para botar na cadeia os criminosos liderados por Antônio Jussivan Alves dos Santos, o Alemão, que, sozinho, recebeu uma pena de quase 170 anos e responde a outros 51 processos, de acordo com o Jusbrasil, plataforma que disponibiliza informações genéricas sobre contendas judiciais em todo o território nacional. Dezessete anos depois, a PF ainda apresenta novas prisões: em 16 de março, uma mulher de 41 anos, cuja identidade ainda é mantida sob sigilo, foi detida em Boa Viagem, no Sertão do Canindé, no coração do Ceará, terra natal de Alemão.

“Dinheiro Maldito”, o terceiro e último segmento, disseca o golpe como o que acabou sendo, um feitiço que virou contra os feiticeiros — e muito mais rápido do que eles mesmos imaginavam. O próprio Alemão passou por apuros dessa natureza, quando o irmão, o comerciante Antônio Jussiê Alves dos Santos, foi sequestrado em Boa Viagem, em 1° de abril de 2006 — oito meses após o furto milionário —, por homens que pretendiam achacar o chefe da quadrilha. Antes de Jussiê, outras cinco pessoas ligadas direta ou indiretamente à quadrilha foram sequestradas, incluindo Luís Fernando Ribeiro, o Fê, o próprio financiador da ação de Fortaleza. Em outubro de 2005, dois meses depois da invasão, Fê foi levado por supostos policiais federais da porta de uma boate em São Paulo. A família pagou 2,1 milhões de reais pelo resgate, mas num furo de reportagem, o jornalista Marcelo Godoy, de “O Estado de São Paulo”, revelou, a contragosto da polícia, que Fê havia sido executado.

Remontando à ideia decrépita e enganosa da vida fácil da bandidagem, e rechaçando-a, “3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central” vai direto ao ponto, parecendo seca demais em alguns trechos. Não obstante, o caráter assumidamente documental da série é sua grande qualidade, lembrando o finado “Linha Direta”, programa policial exibido pela Rede Globo de Televisão entre 1999 e 2007, em seus tempos de glória. A fusão da narrativa factual às reconstituições, que permeiam toda a produção, mas jamais passam da medida, é um acerto, coroado, por óbvio, pela pluralidade e riqueza dos depoimentos. A série de Daniel Billio pode ser definida por uma palavra: precisão. Nada falta ou sobra no transcorrer de três episódios de sessenta minutos em média, ainda que se depreenda uma singeleza meio pueril da montagem e a pouca vontade quanto a burilar a apresentação estética do que é mostrado. Mesmo assim, até o juridiquês de alguns entrevistados tem sua graça, não deixando nada a dever aos programas do gênero, ainda hoje muito populares nos Estados Unidos, por exemplo. Este é um veio de que ainda pode sair muito ouro por aqui.


Minissérie: 3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central
Direção: Daniel Billio
Ano: 2022
Gênero: Documentário/Policial
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.