Novo filme de ação da Netflix vai te deixar sem fôlego até o fim

Novo filme de ação da Netflix vai te deixar sem fôlego até o fim

As guerras são um capítulo à parte na confusa jornada do homem, escrito com o sangue de indivíduos que dedicaram-se a corrigir falhas que não eram suas e emoldurado por vidas que não tinham nenhum vínculo com o que se passava: a morte investida da força mais crua, da violência mais pusilânime as arrebata, e é só. Além de soldados destemidos, que muitas vezes dão a vida por causas nas quais não creem ou mesmo sequer conhecem, há quem tome parte num confronto armado somente por uma autoimposição cívica e sem jamais ter botado os pés num campo de batalha, esmerando-se por garantir que tudo se resolva da forma mais cômoda possível. Malgrado um dos adversários reunir mais razões para lutar que o outro, a verdade é que a primeira vítima numa guerra é a verdade, e só a verdade salva. A vida encerra incontáveis mistérios, muito mais do que nossa vã filosofia pode supor, como disse aquele bardo inglês, e é pelo rigor da vida como ela é que temos de definir nosso jeito de ser. Tentamos, alguns menos que outros, e uns poucos com convicção, e o perigo reside precisamente aí. Há mil descaminhos ao longo de uma vida, e todos eles, por mais retos que possam se mostrar, podem conduzir à perdição.

Na Suécia dos nossos dias, uma guerra civil está em curso e, ninguém parece entender direito o motivo. Baseado no romance homônimo de Jerker Virdborg, publicado em 2002, “Caranguejo Negro”, o thriller de Adam Berg lançado em fevereiro de 2022, arrasta o espectador por um cenário de distopia crescente, que vai tomando conta da história aos poucos. Irmãos combatem entre si em fronteiras tênues, que não definem com exatidão onde começa e onde acaba cada território. Como parte dos absurdos próprios das guerras, não há um juiz ou mesmo mediadores a fim de dizer que métodos podem ser usados e determinar as possíveis sanções àqueles que infringem as regras do jogo justo. Numa geopolítica caótica, não se sabe o que defendem um e outro lados, o que condenam ou o que os faz preferir continuar com os enfrentamentos a pensar numa solução que atenda a todos. À medida que a narrativa ganha corpo e se firma, bem-parada pelo roteiro de Berg, Virdborg e Pelle Rådström, nota-se o empenho do filme em despertar no público a ojeriza pelo poder, afinal é por isso que as nações guerreiam umas contra as outras e, como é o caso, pior: se fragmenta por si mesma, com cidadãos de um mesmo povo que se estranham. Não existe abordagem moral que se encaixe numa sucessão de fatos tão amorfos, tão faltos de sentido. Não se consegue estabelecer um ponto de contato entre indivíduos que vieram de um mesmo lugar.

Na tentativa de explicar o que, afinal, fez com que a Suécia se partisse e se entregasse a essa perigosa aventura fraticida, “Caranguejo Negro” se concentra em Caroline Edh, uma mulher comum com um talento nada convencional: ela se desloca sobre as rodas de um par de patins como ninguém. A premissa pode parecer banal ou até nonsense, mas em se tratando de um país que enfrenta um inverno fustigante, com longos períodos de neve e de águas congeladas, a escolha de Edh para a missão sobre a qual o diretor vai se estender melhor algumas sequências depois — e que ela não titubeia em aceitar — é a mais correta. Noomi Rapace apresenta, como sempre, um desempenho preciso e é muito competente tanto ao enaltecer a bravura e o altruísmo de sua personagem como seu desencanto e sua revolta por ser imbricada num problema que não lhe tocava. Clara ironia da pena de Virdborg, que atribui a seu país uma vocação bélica que nunca teve — a Suécia foi uma das oito nações neutras no transcorrer de toda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) —, é como se o filme argumentasse que a Suécia é boa demais para o resto do mundo, que se fosse para envolver-se numa guerra, que essa guerra dissesse respeito só aos próprios suecos. Mais importante que a paz é a forma como se a alcança, é o que se subentende, embora o filme não se aprofunde demais nisso e dê preferência aos momentos que retratam a animosidade do mundo de gelo que cerca Edh, captado pela fotografia de Jonas Alarik, de tirar o fôlego ao contrapor a escuridão natural e onipresente no longa aos instantes de menos tensão dramática e maior fruição da natureza, em planos sobriamente elegantes de um branco acinzentado certeiro.

A intimidade de Edh começa a se deixar iluminar quando Berg mostra sua protagonista junto com a filha, enquanto as duas são tiradas do carro porque homens armados usando balaclavas realizam buscas e detêm quem lhes parece suspeito. Já era a guerra, colocada na rua pela Operação Caranguejo Negro, apesar de que quase ninguém soubesse. A menina e a mãe são separadas, e pouco depois, na efervescência do caos social, Edh surge no vagão de um trem, coagida a levar um recipiente com algo capaz de garantir a vitória de seus superiores, valendo-se de sua destreza com os patins. Acompanhada de seis mercenários, cada qual mais insurreto que o outro, a personagem de Rapace se lança num encargo suicida a que sobrevive, mas que termina por abatê-la de outra forma. 

Num ato final um tanto atribulado, em que o longa flerta com soluções bastante radicais para os conflitos que se abatem sobre os homens, Edh, essa anti-heroína que encarna valores obsoletos até para si mesma, resolve dar um basta a qualquer possível continuidade da guerra oferecendo-se em sacrifício. Adam Berg encerra “Caranguejo Negro” deixando a trama entre a parábola sobre uma paz impossível, uma vez que a humanidade nunca se contenta com seus ganhos e quer mais sempre, e um libelo pela esperança. Caroline Edh é o que o gênero humano é capaz de produzir de melhor e de pior.


Filme: Caranguejo Negro
Direção:
Adam Berg
Ano
: 2022
Gêneros: Ação/Guerra/Thriller
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.