Delirante, intrigante e imprevisível, filme na Netflix vai gelar sua espinha

Delirante, intrigante e imprevisível, filme na Netflix vai gelar sua espinha

Um suspense sobre tipos esquisitões, que sabem de números tanto como de luta, que mistura máfia e autismo, e que ainda sugere um romance entre um protagonista nada convencional e uma mocinha tão pouco linear ou impacta logo nas primeiras sequências ou se conforma em arrastar-se ao longo de quase duas horas. Felizmente, “O Contador” (2016) pertence à primeira categoria, e é quase impossível de ser classificado. Já na cena inicial, Gavin O’Connor, com a direção segura de sempre, vale-se do bom roteiro de Bill Dubuque para situar o espectador na trama. Vão se amalgamando em enquadramentos amplos, banhados sob a luz amarelada do sépia e uma resolução bastante granulada — óbvia e poética evocação ao passado —, registros de uma carnificina perversa envolvendo criminosos de facções tradicionais e passagens que remontam a um pedaço da vida de alguém. O ano é 1989 e a ação se desenrola no que se assemelha a uma casa de apoio a crianças excepcionais. O diretor, um médico inacreditavelmente ponderado, defende junto a um casal inconformado que o filho deles passe uma temporada no instituto, sob a garantia de ter mais independência e se comportar de uma maneira mais próxima a dos garotos tidos por normais. Na sala de espera, esse garoto, observado pelo irmão caçula, termina a montagem de um quebra-cabeça em tempo recorde, com as peças, reunidas em cima do tampo de vidro de uma mesa, voltadas para o chão.

Essa viagem narrativa de O’Connor é fundamental a fim de que se entenda a complexidade do personagem central de seu filme. Esse menino torna-se um dos analistas contábeis mais competentes dos Estados Unidos — e um homem tão racional (e frio) quanto uma função de segundo grau. Seu nome (ou, pelo menos, o nome pelo qual se faz conhecer) é Christian Wolff, alusão ao filósofo e matemático polonês, que viveu entre 1679 e 1754, mas poderia ser também uma homenagem ao músico e compositor contemporâneo francês, radicado na América, Christian Wolff, reforçando a ambivalência do tipo encarnado com a dedicação habitual de Ben Affleck. É curioso notar como Wolff é parecido com o Will Hunting do amigo Matt Damon em “Gênio Indomável” (1997), dirigido por Gus Van Sant e cuja história, escrita por Affleck e Damon, lhes deu o Oscar de Melhor Roteiro Original. A vida dá voltas, mas muitas vezes acaba parando em lugares já sabidos.

Não foi o caso, mas “O Contador” também poderia ter angariado suas estatuetas em louvor à performance de Affleck ou, por óbvio, à qualidade do roteiro, ou ainda em reconhecimento ao destaque de alguns coadjuvantes. O Raymond King de J.K. Simmons é um achado, e Simmons está aqui tão bem quanto no superestimado Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014), dirigido por Damien Chazelle, pelo qual faturou o prêmio da Academia de Hollywood correspondente à categoria. O antagonismo silencioso, mas constante, de King para com a figura canhestra do personagem de Affleck, somado a sua parceria com Cynthia Addai-Robinson como Marybeth Medina, a subalterna admitida por ele precisamente por ter uma experiência muito peculiar com o crime e os criminosos, fazem da atuação de Simmons uma parte especialmente saborosa do filme, que a essa altura já mostrara a que veio: Wolff está na mira do FBI e King é hábil, primeiro em manipular e chantagear Medina, usufruindo de um segredo sobre a nova agente, e em seguida despertando nela uma vontade genuína de dar certo e subir bem alto na corporação. 

Derivando algo confusamente em direção à ficção científica, o protagonista começa a trabalhar para Lamar Blackburn, o dono de uma empresa de próteses de alta tecnologia vivido por John Lithgow, onde conhece Dana Cummings, uma das responsáveis pela contabilidade da companhia. Interpretada por Anna Kendrick, com quem Affleck vem a compor um par antirromântico, Cummings, uma mulher sem interesses sexuais e apelo erótico até então, faz do trabalho a grande motivação de sua vida, e após uma noite inteira de serão, faz uma descoberta que implica reconhecer que está em curso um grande golpe tributário por parte de um de seus chefes. Como recompensa, passa a ser caçada, junto com Wolff, por matadores profissionais, dentre eles Braxton, de Jon Bernthal, com um passado em comum com o contador. O roteiro de Dubuque encerra revelações muito pouco verossímeis, mormente a que se relaciona mais diretamente ao personagem de Lithgow, que participa da cena remotamente ao assistir à subtrama tomar corpo por meio de câmeras do circuito interno de TV, sem apreender direito o que tem diante dos olhos e deixando o público um tanto embasbacado.   

Desde o início, a pretensão de Gavin O’Connor no filme era fundir o poder de sugestão e a capacidade de se entregar à fantasia da audiência, que se deixa persuadir, mas não incondicionalmente. O excelente desempenho do elenco é quase ilimitado — com Ben Affleck se saindo melhor que a encomenda nas sequências de enfrentamento físico com armas e sem elas —, mas nem tudo transcorre como deveria em “O Contador”. Todavia, instantes de encantamento, como o acerto de contas entre Wolff e Braxton, e sua separação talvez definitiva de Cummings merecem atenção nessa história sem pouso certo, mas que emociona. E emoção nem sempre quer dizer final feliz.


Filme: O Contador
Direção: Gavin O’Connor
Ano: 2016
Gênero: Drama/Ação/Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.