O tesouro inesperado da Netflix que vai manter seus olhos grudados na tela enquanto quebra seus ossos

O tesouro inesperado da Netflix que vai manter seus olhos grudados na tela enquanto quebra seus ossos

A humanidade nunca inspirou a consideração de muitos, percepção que se agudiza ainda mais em tempos extremos feito os que temos vivido. O homem desenvolve invenções que mudam sua história — a exemplo do próprio cinema —, empreende negócios ousados que lhe conferem fortunas instantâneas, dedicou-se a pesquisar e descobrir novos remédios para males cujo desaguadouro era a morte certa e tratamentos que apareceram com a evolução mesma do gênero humano, mas continua a se sabotar e se autodestruir. A ciência, a medicina, a arquitetura e, claro, a arte seguem seu propósito de aperfeiçoar quem se admite falto de conhecimento e não se furta a aprender, provavelmente a maioria das almas sobre a Terra, mas neste mesmo momento várias nações travam guerras – muitas vezes contra seu próprio povo —, a distribuição de renda é um escândalo por si só e há muitos que disputam como a própria vida um pedaço de pão ou um naco de carne. O homem é violento, cruel, sente-se no direito de passar por cima de quem quer que seja para afirmar um projeto de poder, cumprir uma meta, demonstrar força sobre aqueles que julga inferiores. Ou seja, o homem continua imbatível naquele que parece ser sua ambição maior: ser seu próprio lobo.

O Vietnã passa por um surto de sequestros inexplicáveis de crianças, deixando inconsoláveis pais e mães sem saber a quem recorrer, mas firmes em seu propósito de justiça ou reparação. Hai Phuong, a protagonista do surpreendente “Fúria Feminina” passa por esse drama, que aborda um problema social grave e muito específico sob uma perspectiva nada óbvia e reveladora de novos aspectos da questão. O roteiro do diretor Le-Van Kiet’s privilegia a ação, sem dúvida, mas não foge às discussões que se avolumam ao longo da pouco mais de hora e meia de projeção de seu longa, o que deixa claro que seu país parte com tudo para ser uma nova referência de bom cinema na Ásia, cuja hegemonia já foi do Japão e hoje está nas mãos da onipresente e genial Coreia do Sul com seus filmes sobre rigorosamente tudo, de dramas de família característicos a histórias de zumbis as mais impensáveis.

Kiet tem conseguido destaque razoável ao levar à tela dramas policiais plenos das sequências de artes marciais que, claro, os asiáticos dominam como ninguém. “Fúria Feminina”, lançado em 2019, perpetua a tendência vista há muito tempo nessas produções — um cenário de crime, aqui se trata de sequestro; um herói que enfrenta perigos sobre-humanos para combatê-lo, no caso, uma heroína; e os desdobramentos evidentes (ou nem tanto) de tal conduta, direcionamento totalmente alinhado com a inclinação do próprio Kiet em valorizar o tema do gênero em seus trabalhos, tarefa é facilitada pelo talento brioso de Veronica Ngo, que se faz notar em “Star Wars: Os Últimos Jedi” (2017), dirigido por Rian Johnson. No enredo do vietnamita, Ngo absorve toda a carga dramática que o diretor espera dela, mormente numa narrativa aparentemente de todo dissociada de quaisquer possíveis elucubrações filosóficas. Com expressões faciais devotadamente endurecidas, uma vez que sua figura é suave por natureza, Hai Phuong capricha nos movimentos quase acrobáticos que se tornam sua marca em cena.

Assistir a “Fúria Feminina” fora do cinema é quase um sacrilégio, mas pior é passar sem a experiência de testemunhar cores primárias exuberantes e o neon que explodem na tela, realçando as belezas naturais do Vietnã. O filme tem início em  Can Tho, mostrando a personagem central botando na rua os moradores que não pagam as dívidas que contraíram com o agiota que a contratara. É com esse dinheiro, maldito para sua filha, Mai, de Cat Vi, que ela mantém a si e à menina, não sem passar alguma necessidade. Sem família e criando Mai sozinha, Hai Phuong é vista como uma pária no povoado em que vivem. O sumiço de Mai está estritamente relacionado a esse ofício inglório e meio desonroso e Kiet mostra destreza e sobriedade ao expor a chance da garota ter sido raptada por traficantes de órgãos humanos. A personagem de Ngo parte numa caçada de moto aos possíveis criminosos pela extensão do rio Mekong. Já que não consegue resgatar a filha, Hai Phuong se desloca na caçamba de um caminhão para Ho Chi Minh, para onde crê que Mai fora levada. Uma jornada de sofrimento físico, mas sobretudo espiritual, em que terá de apaziguar seus demônios interiores se quiser ter a filha de volta.

O argumento da mãe heroína, disposta a desafiar qualquer um que se lhe imponha no caminho, não é novo, por evidente, tampouco o da mulher sozinha, que se vê em palpos de aranha, mas não pode contar com a ajuda de ninguém. No comovente “Relâmpago” (1952), Mikio Naruse (1905-1969) já se estendera sobre as agruras de uma mulher ainda jovem e o desafio de se sustentar e se proteger sozinha numa sociedade hostil, opressiva como a de hoje, mas que reunia em torno de si, de forma ainda mais condensada, os preconceitos vigentes desde que o mundo é mundo no que respeita à mulher que ousa levar a vida do jeito que consegue. No caso do filme de Naruse, a mocinha nem ansiava por ser tão revolucionária assim, nas acabou forçada a uma vida de celibato e castidade artificiais porque o amor como o concebia não se lhe materializou. Hai Phuong, por outro lado, pudera experimentar o sentimento amoroso, a paixão pelo homem que também a desejava, mas foi igualmente alijada da felicidade por descobrir-se enganada do modo mais desleal. Como tivera de passar por cima da autoridade paterna — uma das bases da milenar tradição oriental — para ficar com o homem que a desapontara irremediavelmente, não tinha mais qualquer margem para retorno.

Veronica Ngo tem o condão de superar as ínfimas debilidades de “Fúria Feminina”. Sua performance eminentemente estoica, de uma genuína mártir, bem ao modo dos povos asiáticos, associada à fotografia sem par de Christopher Morgan Schmidt e, claro, às coreografias de Samuel Kefi Abrikh, fazem do filme de Le-Van Kiet um presente, tanto mais prazeroso porque algo inesperado.


Filme: Fúria Feminina
Direção: Le-Van Kiet
Ano: 2019
Gênero: Artes Marciais/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.