Lançamento da Netflix é o filme mais inventivo, delirante e inovador de 2022

Lançamento da Netflix é o filme mais inventivo, delirante e inovador de 2022

Experiência completamente inovadora — e um tanto delirante também —, não é tão simples se definir “Adam by Eve: A Live in Animation” (2022), do japonês Nobutaka Yoda. O mais próximo que se pode chegar, sem risco de equívocos vexatórios, é que o trabalho de Yoda tem um pé nos videoclipes lançados para divulgar canções numa era jurássica que compreende o fim da década de 1980 e o início dos anos 1990. O diretor parece mesmo inclinado a revirar boa parte do que até então se tratava apenas de lixo tecnológico e, ao fazê-lo, reacende a chama da nostalgia, da inocência, revive a atmosfera de um mundo onde já existia guerra, por óbvio, mas ou por completa inconsequência ou por uma ingenuidade beatífica, as pessoas pareciam encontrar na vida uma nesga de esperança e dessa forma o diabo não tinha tão mau aspecto.

Não se volta quarenta anos no tempo impunemente. O espectador decerto vai sentir-se perdido em muitas passagens ao longo dos 58 minutos do média-metragem, sobretudo quem não tem lá muita afinidade com o universo feérico (e frenético) do nipop, a cultura pop nipônica. As alusões ao carro-chefe do livro bíblico do Gênesis, que conta a criação do mundo valendo-se de metáforas com frutos proibidos, serpentes ardilosas e, claro, um casal composto por um homem chamado Adão e Eva, a mulher confeccionada pela mão de Deus a partir de sua costela, não são muito nítidas e há que se ter, antes de mais nada, um senso de imaginação a perder da medida para compreender de imediato que o arcabouço monocular que habitam os sonhos de uma das protagonistas são ninguém menos que a própria manifestação divina, que tudo vê e tudo sonda e fiscaliza, inclusive durante o sono dos homens, incansáveis pecadores. Yoda sabe como juntar de um modo harmonioso, mas não menos fascinante, a condução mais fluida ao ritmo descontrolado da trama, dominante, e quadros bidimensionais encaixam-se à perfeição quando o diretor vira a chave para o 3D, influência de Satoshi Kon (1963-2010), outro mestre do surrealismo digital dos animes. “Paprika” (2006), a obra máxima de Kon, lançou mão da técnica a fim de, do mesmo modo que Yoda, falar de sonhos, do delírio em oposição ao ramerrão da vida.

A dada altura de “Adam by Eve”, se tem muito claro que a menção aos personagens bíblicos de Adão e Eva é mera isca, e o roteiro do diretor se aprofunda na convivência de Aki e Taki, amigas adolescentes que partilham uma com a outra as maravilhas e os perigos de se morar numa cidade onírica como Tóquio, em que cada esquina esconde um torvelinho de possibilidades para novas histórias. Numa dessas expedições pela capital japonesa, Taki desaparece sem deixar rastro e Aki, sem titubear, vai atrás dela. Fantasia e vida real se chocam e se confundem no momento em que Aki se deixa guiar pela voz de Taki numa Shibuya saída da cabeça do diretor. Vagando pelo bairro mais populoso da megalópole, Aki depara-se com situações para as quais não estava preparada, mas que temperam o filme com a ação que começava a fazer falta.

Yoda abre espaço para que Eve, um dos artistas mais badalados do Japão hoje, divulgue seu trabalho, com hits como “Kaikai Kitan”, acerca das dificuldades de se viver num mundo em que, de uma maneira ou de outra, pessoas insignificantes são obrigadas a se esconder nas trevas da noite, que acabam por salvá-las de uma existência sem sentido. O artista também volta-se para novas composições, especialmente pensadas para o filme e que tomam corpo em shows ao vivo, mostrados de forma a exaltar o espírito de alegria e liberdade, sobretudo em certa fase da vida.

Tudo no trabalho de Yoda remete a um jeito mais leve de se viver e Eve encarna essa ideia como ninguém. O cantor interpreta o tema de abertura de “Jujutsu Kaisen” (2021), dirigido pelo sul-coreano Seong-hu Park, ao passo que também se dedica ao Vocaloid, um software capaz de sintetizar a voz humana. Eve faz uso do programa para divulgar versões de ckassicos japoneses no Nico Nico Douga, o YouTube do Japão. Embora responsável por performances que deixam o público verdadeiramente siderado, Eve é discreto, não se deixa filmar e pretende se manter no anonimato. Junto com Yoda e Eve, embarcaram no projeto o diretor de arte Hibiki Yoshizaki, realizador do curta “Me!Me!Me!” (2014), e Genki Kawamura, produtor de “O Tempo com Você” (2019).

Os efeitos visuais são empregados sem nenhuma parcimônia, hollywoodianamente, como se Nobutaka Yoda quisesse deixar claro que a estética tecnológica significa alguma coisa em “Adam by Eve: A Live in Animation”, mas não é tudo. A alma do filme vai muito além das luzes furiosas de uma espiral de sequências a duzentos por hora, mas é necessário se deixar capturar pela loucura da superfície para percebê-lo.


Filme: Adam by Eve: A Live in Animation
Direção: Nobutaka Yoda
Ano: 2022
Gêneros: Animação/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.