O suspense de ação da Netflix que coloca Velozes e Furiosos no bolso

O suspense de ação da Netflix que coloca Velozes e Furiosos no bolso

Para o bem ou para o mal, o cinema francês se diversificou. Seja por convicções estéticas, seja pela pressão aterradora e imperativa do mercado, na França de hoje se faz todo tipo de filme — e há que se dizer que as produções menos comprometidas com escolas artísticas e postulados filosóficos são as que mais têm se destacado, precisamente por agradar a todo gênero de público e não se ater a formalidades de concepção. Isso se deve em grande medida à pandemia de covid-19, disseminada a partir de março de 2020, responsável por confinar em casa gente de todos os estratos sociais ávida por alguma diversão, alguma forma de alento, mas não só. O cinema feito para consumo rápido, que teria de prescindir de grandes salas de projeção para acontecer, precisaria também de narrativas capazes de satisfazer essa camada, sob pena de se tornar sem sentido e, por conseguinte, sem importância.

Ao observar essa lógica, “Bala Perdida” se sai bem. O filme pipoca do estreante Guillaume Pierret, de 2020, não tem grandes pretensões e, digo de novo, essa é a maior qualidade de uma história e de um diretor que se sabem limitados sob um ou outro aspecto. Pierret tem a menor vontade de se tornar o novo Alain Resnais (1922-2014) ou o Godard reconstruído, seja lá o que isso queira dizer, se é que conhece a fundo a obra de qualquer um desses dois baluartes da produção cinematográfica francesa. A França não é os Estados Unidos, Marselha, onde se passa a história, é muito diferente de Los Angeles — na verdade, não se compara nem com a prima rica Paris — e thrillers de ação pensados como um agradável passatempo (e só) até podem ganhar prêmios, mas desde que pelas razões certas (e se não ganharem, nenhuma cabeça é cortada por isso). Nada como levar a vida de um jeito leve!

O protagonista de “Bala Perdida” atende pelo nome de Alban Lenoir, familiar para quem tem desde tenra idade a obsessão meio mórbida de vasculhar fichas técnicas de filmes a fim de saciar aquela curiosidade sufocante acerca de um ator coadjuvante que se destaca, mas que ninguém conhece, ou o autor daquela trilha matadora, que teima em reverberar por todo vãozinho entre os ossos da caixa craniana. Numa tarde de calor modorrento passam-se trinta anos e toma-se um susto ao saber que aquele ator, quase irreconhecível, estrelou duzentos filmes que transcorreram diante dos olhos de todo mundo e não se foi esperto o bastante para percebê-los, ou que o tal compositor desapareceu tão rápido quanto surgiu. A brincadeira fica saborosamente perigosa quando não se precisa mais passar horas a fio pelos corredores estreitos da videolocadora de um primo em segundo grau ou, que delícia!, no chão alcatifado do videoclube perto da escolinha de natação — até porque nenhum dos três existe mais — e se conta com o auxílio providencial da internet. É assim que se fica sabendo que Lenoir começou a carreira como dublê e agora, além de ator, é também corroteirista, junto com Pierret, e “colaborador artístico” do filme. Aí, é hora de permitir que aflore aquela expressão de “eu já sabia!” ao rosto e embarcar nessa viagem um pouco menos ressabiado.

Pierret e Lenoir têm talento, e são mais fortes quando se unem. É impressionante a forma como conseguem manter a história em constante movimento, e é esse ritmo alucinado e alucinante que passa a tomar conta de “Bala Perdida” depois da introdução meio confusa, mas que se comunica perfeitamente com o restante do enredo, cheio de reviravoltas, pancadaria, perseguições ao longo de rodovias interditadas para as filmagens e também pelas ruas apertadas de Marselha e batidas. Ainda sobra espaço para que a dupla manifeste seu lado Professor Pardal e construa traquitanas habilmente voltadas para desconjuntar veículos de inimigos. Lino, o personagem de Lenoir, é o comandante da guerra de um homem contra o mundo do crime, tão vasto e tão bem articulado que se assenhoreou da polícia marselhesa. 

Nas sequências iniciais do filme, Lino planeja o assalto a uma joalheria usando o Renault Clio não na fuga, mas como a principal ferramenta da empreitada, todavia, conforme se pode ver, um erro de cálculo o faz cair direto nos braços da polícia. Muito melhor mecânico que ladrão, o personagem de Lenoir é favorecido com um acordo especial, que lhe permite abater um dia de cárcere por outros tantos de expediente na oficina de uma das unidades da gendarmaria, espécie de Polícia Federal da França. A certa altura da história, o espectador passa a saber que entre Lino e Charas, o chefe da seção vivido por Ramzy Bedia, nascera uma amizade, interrompida quando o policial é morto por Areski, personagem de Nicolas Duvauchelle, que serve na mesma divisão em que Charas fez carreira, diante de Lino, que acaba responsabilizado pelo crime.

A partir de então, “Bala Perdida” é tragado para uma espiral de cenas progressivamente violentas e rápidas, muito rápidas, em que Lino é desafiado a provar sua inocência, contra tudo e contra todos os bandidões que continuarão a cercá-lo até o fim, valendo-se de uma certeza e de um indício elementar que se refere ao tal projétil desconhecido — e subitamente disputado — do título. Engambelando (e surrando) todos os policiais da delegacia para onde é despachado a fim de responder a um novo processo, muito mais rigoroso, Lino escapa e o que assiste até o desfecho são variações muito bem elaboradas sobre um mesmo tema, com a presença criminosamente subaproveitada de Stéfi Celma como Julia, o par antirromântico do anti-herói.

Evocando recursos já explorados à farta em produções congêneres, como as da franquia “Velozes e Furiosos” (2001), Guillaume Pierret sabe que seu longa não é perfeito — e faz desse um grande ativo de “Bala Perdida”, que se vira por outros meios. A fotografia de Morgan S. Dalibert, sábia ao escolher a hora certa de acender ou apagar a história, bem como as sequências de lutas, impecavelmente coreografadas por Jean-Claude Lagniez, tornam impossível ignorar o trabalho de Pierret, que pode ter muitas aspirações mais na vida. Se fizer tudo com tamanho denodo, a exemplo de como conduzira seu filme, vai chegar lá, dessa maneira, comendo pelas beiradas. Talento e vingança são pratos que se saboreiam aos poucos.


Filme: Bala Perdida
Direção: Guillaume Pierret
Ano: 2020
Gênero: Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.