“Downton Abbey” não é para todo mundo. Talvez seja aconselhável evitá-lo quem não é particularmente fã do gênero, não suporta os rapapés com que se tratam os nobres ingleses ou acha que sempre resta algo de farsesco em histórias como essas; para os demais, o filme representa duas horas de diversão fácil, garantida por atuações esmeradas, figurinos ostensivos e a direção zelosa de Michael Engler.
Aqueles que se declaram (ou se assumem) dependentes do que a série criada por Julian Fellowes, sobre o cotidiano de nobres e servos em uma mansão inglesa do princípio do século 20, levou ao ar ao longo de nada desprezíveis seis temporadas, entre 2010 e 2015, encontram no filme lançado em 2019 todo o fausto dos bastidores da vida em meio a aristocratas muitas vezes mais dados a pompas e circunstâncias do que a própria realeza, justamente por saber que nunca há de chegar lá — a não ser por algum ardil muito bem conduzido, de preferência envolvendo relações extraconjugais, exatamente como na patética vida real. Mesmo quem não se interessa por enredos aparentemente fúteis, que retratam realidades inimagináveis ao homem comum, decerto já ouvira falar do desempenho da soberba Maggie Smith. Aqui, a veterana, intérprete da ominosa Violet Crawley, a Condessa Viúva, cede espaço à porção mais jovem do elenco, que se destaca, uns mais que outros, deixando claro que o cristal rachou e se perdeu a magia de acompanhar uma trama por seis anos, em porções homeopáticas, com cada núcleo trabalhado na sua devida hora, respeitando-se os pitacos do público, que nunca se furtou a manifestações até excessivamente aguerridas nas redes sociais. Contudo, o grande trunfo de um trabalho como “Downton Abbey” é falar de assuntos de adultos para adultos, em especial os que se sentem sufocados por tantas superproduções sobre batalhas interestelares, dispositivos de inteligência artificial mais pérfidos que o homem, protagonistas de histórias em quadrinhos e habitantes de terras mágicas, mantendo boa parte do charme de igualmente tratar de uma narrativa desabridamente over em diversas passagens. A vida da família real inglesa, com seus acólitos e, o mais importante, sua criadagem, tem um lado fantasioso que o filme capta à perfeição. São quase cinquenta personagens, entre nobres e vassalos, esgrimindo entre si, levando à cena planos mirabolantes que, em maior ou menor medida, visam a conquistar mais prestígio e fazendo com que pululem fofocas de toda ordem, enquanto a direção de arte corta um dobrado tentando manter o controle sobre um sem fim de baixelas de porcelana, pratarias, móveis vitorianos e vestidos cheios de babados românticos. Esse ofício de barrocas filigranas vem à luz na trama sob a forma desses empregados que renunciam à vida pessoal a fim de garantir a continuidade das tradições da dinastia real britânica, ao sair debaixo de uma tempestade inclemente a fim de organizar os últimos detalhes para a visita do rei George V e da rainha Mary, que participarão de um jantar em Downton. Mesmo de afogadilho — afinal, é bem difícil condensar seis anos em 120 minutos —, o filme consegue fazer com que o espectador tenha a impressão mais característica da série, a de se estender sobre a vida de personagens tão pouco reais e ao mesmo tempo tão vulneráveis em suas humanas fraquezas.
Aqui, Lady Mary, vivida por Michelle Dockery, anda assombrada com a ameaça de que Downton não sobreviva aos cortes de gastos, inspirados por protestos como a Greve Geral de 1926, possível época em que a história se passa. O ex-mordomo Carson, interpretado por Jim Carter, interrompe a aposentadoria e reassume temporariamente o controle do mosteiro desativado antes do evento que pode inscrever seu nome nos livros de história. Os conflitos entre a Inglaterra e a Irlanda do Norte, que anseia por autonomia da Coroa, vêm em pílulas que mostram Tom Branson, personagem de Allen Leach, ex-motorista de Downton e atual gerente da propriedade, como um socialista irlandês convicto, o que desperta a desconfiança de seus colegas; já o arco que se desenha em torno de Thomas Barrow, de Robert James-Collier, o primeiro lacaio homossexual a integrar o quadro de funcionários, se presta a exaltar as mudanças de comportamento no mundo — com foco, por óbvio, no Reino Unido — quanto a temas que tocam os rígidos costumes ingleses com mais precisão, ainda que, como todos sabem, o mundo mudou, sim, mas a Inglaterra nem tanto, mormente em aspectos tão pouco evidentes. O roteiro de Fellowes prefere mesmo é se concentrar nas picuinhas que botam frente a frente a condessa Crawley e Lady Maud Bagshaw na disputa pela posse do Granby Estate. Imelda Staunton apresenta uma performance à altura do que Smith vinha mostrando, e a cena em que Lady Maud revela a intenção de deixar o Granby Estate, um símbolo do poder dos Crawley há gerações, de herança para Lucy Smith, sua dama de companhia é decerto o pulo do gato no filme, momento em que afloram, ainda que com a frieza da aristocracia britânica, a hipocrisia e os preconceitos que abundam nesses círculos.
Definitivamente, a última coisa que Julian Fellowes e Michael Engler desejam é reinventar a roda ou açular polêmicas. Por incrível que possa parecer, “Downton Abbey” é um filme como seres humanos que, malgrado se tenham na conta de representantes diretos da linhagem divina, não passam de reles mortais, tão suscetíveis quanto quaisquer outros. Evidentemente, isso tem de restar muito bem oculto ao longo do roteiro, afinal, ninguém compra um filme sobre, grosso modo, reis, rainha e que tais, para levar uma história comum também ao populacho. Como diria um famoso carnavalesco, miséria é para os intelectuais. Nada contra a decadência, desde que com elegância.
Filme: Downton Abbey
Direção: Michael Engler
Ano: 2019
Gêneros: Romance/Drama/Época
Nota: 8/10