Suruba e carnificina na longa fila das refugiadas

Suruba e carnificina na longa fila das refugiadas

Por trás das estratégias de guerra prevalecia um front de insensíveis composto por boçais autoritários e por impotentes sexuais que não se assumiam como fracassados. O amor era apenas mais um daqueles sentimentos caros que tinham fugido do coração dos homens para destinos absolutamente desconhecidos. Talvez, para o peito da criança órfã caída na lama, desmaiada de frio, de fome e de cansaço. Talvez, para as penas quentes das aves migratórias que voavam desoladas para galhos mais seguros onde não existissem dor e iniquidade. Fazia um frio de menos vinte graus no interior sombrio dos homens, um cubículo muscular crescido de musgos, onde bestas-feras patinavam, se escondiam e maquinavam contra a paz. Destruir sempre fora o ofício mais fácil. Havia filas descomunais de mulheres fáceis de se chorar. Bastava observá-las. Jovens, louras, brancas, olhinhos azulados, muitas delas grávidas, que sustentavam mochilas e moleques nos seus braços finos e delicados. Era indelicado desejar a morte dos ímpios. Mesmo assim, elas desejavam. Ninguém que tivesse tetas era feita de ferro. Não era fundamental assistir a uma guerra de perto para se desencantar de vez com o sabor amargo da aventura humana em povoar o planeta. Havia, contudo, uma ordem, a despeito de tanta desordem. Como se fossem mobília, os monitores separavam as mulheres por categorias. A fila das desesperadas. A fila das resignadas. A fila das que sentiam um enorme pavor. A fila das desencantadas. A fila das que ainda queriam se casar e voltar para o país de origem. A fila das que juravam nunca mais colocar um filho nesse mundo horrendo, muito menos, fazer sexo com sujeitos brutos, asquerosos, endemoninhados, em troca de um salvo conduto para habitar um solo estéril que nunca lhes pertencera, a fim de se virarem sozinhas, entretidas com as próprias misérias. Havia — sempre houve — um rol de homens ignóbeis, malvados, armados, desalmados até os dentes, crentes nalgum tipo de seita, religião ou partido político, a rondar as mulheres novinhas e as suas proles imaturas, como faziam as moscas metálicas e os urubus sobre as carniças. “Ainda estamos vivas”, gritou uma mulher velha de muleta. Na visão capenga e maquiavélica dos crápulas, ainda restava algum tempo e algum espaço para a diversão e para os estupros de vulneráveis, antes que a mulherada e as suas crias cruzassem a fronteira para uma vida nova preenchida por velhos dilemas. Sofria-se. Morria-se a granel. A carnificina da fé nunca cessava, pois, todas as refugiadas, a despeito de desejadas para fins de meros esporros vitalícios, de alguma forma, voltavam a acreditar nalguma ínfima possibilidade de felicidade e de encantamento. Bastava, para tanto, manterem-se vivas para se permitirem enganar. Eram mulheres pobres, fáceis de se odiar pelos homens sem escrúpulos, com furúnculos nos ovos, pois, eram vistas como fortemente oferecidas às migalhas de sobrevivência. Eram criaturas belas, pavorosas e supostamente afeitas ao sofrimento. Quem denunciaria tamanha violência e atrocidade? Quem as protegeria das picas de humilhação? Quem sufocaria com as próprias mãos o pescoço de um canalha no cio, em socorro de uma mulher sem visgo no olhar, que já tinha morrido tantas vezes nos últimos dias, desde que a guerra fora deflagrada num salão oval, mas, que ainda continuava em pé, flagrantemente impoluta, a respirar — sem a ajuda dos aparelhos legais do Estado — o ar seco, frio e pestilento da fronteira, a bombear sangue azedo e vinagrado dentro dos rígidos filetes de veias ordinárias? O ordinário marchava sobre a dignidade delas. Coturnos na face da lei. Sobrava sempre um batalhão de perguntas de cunho existencialista, profundamente constrangedoras, irrespondíveis, testando a moral já combalida e já amassada do mulherio. Por onde andaria Deus? Supunha-se, sem convicção demasiada, que o criador fosse só mais um dentre tantos entes desgraçados, desterrados por uma guerra burra, artificial, ilógica e sem propósitos populares. O Pai era um fugitivo de luxo, um ser vaporoso, intocável, branco, de olhinhos igualmente cândidos e azulados, que havia se deitado para choramingar dentro do silêncio deprimente de uma nuvem fria, num endereço celestial impreciso, longe, muito longe, a salvo da perniciosa companhia de homens e de mulheres que o tinham criado às suas imagens e semelhanças. Assim falou Zaratustra. Assim escreveu Nietzsche. Eu vos confirmo e, embaixo, assino.  

Eberth Vêncio

É escritor e médico.