Junto com as guerras, as ditaduras são a evidência mais cabal da fragilidade da civilização, de tempos em tempos desorientada, primeiro pelo brilho fosco dos canhões; depois, pela força coercitiva do sabre. Não raro apoiados pela população, ao menos no início — e daí se pode ter uma pálida ideia da completa falta de unidade e de ordem de uma sociedade —, os candidatos a déspota do momento entendem os regimes de exceção como um salvo-conduto para comprar consciências, espoliar a gente mais desprotegida, calar com cadeia, tortura ou a morte qualquer voz dissonante que ouse se levantar contra a barbárie. Toda autoridade que compõe um governo ditatorial passa a se considerar superior às leis, que tratam de desmantelar o quanto antes, passando a valer um só mandamento, o que insinua envergonhado que o mais forte é quem tem razão. Guerras podem levar a ditaduras, o que acontece na maioria imperativa dos casos, mas acontece de conflitos armados desdobrarem-se no desfecho vexado de uma autocracia, principalmente se redundam num fracasso rumoroso para a tirania em questão.
Informações pré-créditos iniciais situam o espectador no tempo: “Olhar Invisível”, drama do argentino Diego Lerman, foi lançado em agosto de 2010, mas se passa em março de 1982, quando da decadência silenciosa da ditadura de Leopoldo Galtieri (1926-2003) por causa do encerramento da Guerra das Malvinas, desfavorável ao país, que tiveram de se render as tropas britânicas da então primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher (1925-2013), em 14 de junho daquele mesmo ano. O episódio se presta a um pano de fundo bem urdido a fim de que Lerman trabalhe seus protagonistas, ou melhor, sua protagonista. Num tradicional colégio de Buenos Aires, famoso pela rigidez disciplinar aplicada por bedéis que parecem estar em todos os lugares ao mesmo e, assim, veem tudo (o “olhar invisível” do título), tudo é motivo para suspensões — Lerman não entra no mérito de possíveis castigos físicos na instituição, mas já que falamos de excessos, vem à cabeça aquela ideia gasta, mas tristemente verdadeira, sobre o perigo das ditaduras concentrar-se nos desmandos não do chefe máximo de um governo dessa natureza, mas nos seus pequenos agentes —, desde o comprimento do cabelo dos rapazes, alguns centímetros a mais que o tolerável, aos encontros furtivos entre um casal de alunos, em que se entregam a beijos meio desajeitados no pátio da escola. Em vez de inspirar respeito e decoro, um ambiente de tal forma repressivo acaba por reforçar a degenerescência moral de todos os que integram essa conjuntura, inclusive seus líderes.
A inspetora Maria Teresa Cornejo, de Julieta Zylberberg, incorpora à perfeição essa visão de mundo liberticida, com denodo e até um laivo de gozo sádico. Zylberberg encabeça as melhores sequências de “Olhar Invisível”, conferindo a sua protagonista essa aura entre desgraçada e monstruosa que só consegue se satisfazer minando os impulsos e o desejo alheios, tomando por justificativa a vida cinzenta num apartamento acanhado no subúrbio portenho, dividido entre ela, a mãe, Elvira, interpretada por Gaby Ferrero, e a avó, Adela, personagem de Marta Lubos. Lerman vai deixando claro que para Cornejo, a cândida Marita no convívio familiar, a única possibilidade de realização pessoal é mergulhar perigosamente nesse trabalho inglório. E ela vai fundo: como não tem mesmo nada a perder, propõe ao diretor Carlos Biasutto uma averiguação mais detida a fim de descobrir quem é que anda fumando nas dependências do colégios, iniciativa que o personagem de Osmar Núñez encara como um indicio da proatividade da subordinada e aprova de imediato. O que ele não sabe é que Cornejo, em desabrido processo de descompensação mental, se valerá do estratagema para invadir o banheiro masculino e observar os alunos usando o mictório, momento em que o diretor explora de maneira instigante o clichê da solteirona encruada — malgrado a personagem tenha só 23 anos —, que mesmo bonita e jovem, por algum motivo não consegue estabelecer laços emocionais (ou puramente eróticos) com indivíduos do sexo oposto.
O filme segue, apresentando passagens de vívido simbolismo, até desembocar no clímax violento que junta os personagens de Zylberberg e Núñez em circunstâncias literalmente claustrofóbicas, fazendo a inspetora Cornejo e o diretor Biasutto trocarem de lugar. O filme prefere, acertadamente, dar mais espaço ao arco dramático que cerca os protagonistas, presas cada um de um dilema moral de difícil resolução. Se por um lado, a anti-heroína de Zylberberg era, antes de qualquer julgamento, digna de comiseração, passa a ser objeto de asco, enquanto toda a abjeção da conduta que encerra a participação de Núñez na trama — e Biasutto parecia verdadeiramente interessado na moça, deixava subentendido que tinha pretensões sérias para com ela — é absolvida, devido ao modo torpe como é penalizado por seu carrasco.
O roteiro de Diego Lerman e Maria Meira pode até se mostrar vagaroso, ou mesmo francamente arrastado, em tempos em que contemplar, elucubrar, refletir se tornaram obsolescências de um tempo sem comunicação instantânea e interconectividade com o mundo todo, mas “Olhar Invisível” cresce precisamente por reunir seus dois personagens centrais e o batalhão de figurantes do núcleo principal num único cenário, que replica a atmosfera sufocante daqueles tempos, todos fechados naquele lugar e em si mesmos. Até a resolução encontrada por eles para o conflito que prenuncia o desfecho, violenta, respeita a lógica do silêncio, da discrição mórbida, da mudez, do opróbrio. Tudo muito de acordo com a ditadura que tomava conta de todo um país além dos muros daquela madraça.
Filme: Olhar Invisível
Direção: Diego Lerman
Ano: 2010
Gêneros: Drama
Nota: 9/10