Com efeitos especiais impressionantes e cheio de ternura, novo filme da Netflix vai adoçar e acalmar o seu dia

Com efeitos especiais impressionantes e cheio de ternura, novo filme da Netflix vai adoçar e acalmar o seu dia

O tempo em que vivemos tem seus próprios problemas, uns de mais fácil solução, outros que nos absorvem por completo, e só uma razão muito forte nos faria retroceder algumas décadas, onde teríamos de enfrentar de novo medos já superados, nos esperariam aquelas pessoas que tentaram nos fazer mal (e, em muitas ocasiões, fizeram mesmo), mas que também guardam lembranças inestimáveis, as que nos definem e acabaram por nos fazer quem somos, pessoas de quem hoje temos orgulho. Corrigir erros de épocas mortas, ou ainda melhor, evitar que ocorram desperta a cobiça do homem há algum tempo, malgrado toda grande transformação implique consequências às vezes devastadoras.

As operações de resgate de algum detalhe perdido na trajetória de um personagem messiânico, responsável por salvar a humanidade, impedir o nascimento de facínoras que comprovadamente ameaçaram a paz na Terra ou defender povos do extermínio iminente, cuja origem remonta a uma era aparentemente inalcançável, seriam a maior revolução já levada a cabo pelo gênero humano, e o cinema esboça como nenhuma outra manifestação artística a grandeza dessa efeméride, deixando claro ainda que isso  poderia trazer problemas também.

“O Projeto Adam” (2022) não acende de pronto. Shawn Levy, também diretor de “Free Guy: Assumindo o Controle” (2021), parece ter tomado gosto pelo assunto, muito competente ao desenvolver, com habilidade ímpar, o mote do tempo elástico, misturando ao eixo da narrativa, nos momentos cruciais, os elementos de crítica social e distopia de que o filme trata sem proselitismo dessa ou daquela natureza. Para Levy, que volta a fazer de Ryan Reynolds seu protagonista, a natureza humana não se livra jamais de seu caráter frágil, está todo o tempo a precisar de um salvador, de um redentor profano, que parece igualmente perturbado por tanta ignomínia.

Ryan Reynolds apresenta a performance de sua carreira na pele de Adam Reed, que vem à hora certa e encontra o ator maduro e sensível o bastante para dar vida a esse herói quase antitético, deslocado e cínico, que demora a aparecer, embora já diga a que viera logo na primeira sequência do longa. Adam pilota sem muita perícia um jato que, segundo o roteiro de Jonathan Tropper, Mark Levin, Jennifer Flackett e T.S Nowlin, está sendo roubado para que ele consiga se trasladar dos anos 2050 para 2022. Ao que tudo indica, viagens no tempo, principalmente as retrocessivas, do futuro (ou presente, para ele) rumo ao passado se tornaram um expediente comum e ele se vê na medida um meio de interferir em circunstâncias que o afetam diretamente. O protagonista algo inconsequente e leviano que se desenha na introdução de “O Projeto Adam” é sem dúvida um desdobramento do menino entre doce e rebelde que fora, e essa sua personalidade complexa, tão rica de nuances, fica evidente na composição de Walker Scobell, o Adam Reed de 2022. Aos 12 anos, Adam está recebendo a terceira suspensão por brigar com um colega, muito mais forte que ele — ou seja, além de humilhado pelo garoto, acabado ainda mais ultrajado pela punição, que o faz sentir-se mesmo um pária. Scobell equilibra-se bem entre a incapacidade de seu personagem quanto a se ajustar e o jeito racional, espantosamente sensato para alguém da sua idade, como lida com a situação, que deixa a mãe, Ellie, de Jennifer Garner, muito consternada. Nas passagens em que contracenam, Levy consegue transmitir o amor que existe de parte a parte, momento da história em que o diretor explora o sofrimento de Ellie, viúva há mais de um ano e presa a tal ponto àquele passado, recente, mas doloroso, que não é capaz sequer de se desfazer das roupas do marido.

O encontro entre os dois Adam, o de Scobell, estraçalhado por dentro, e o de Reynolds, sangrando por fora, deixa  evidente a afinação entre os dois atores e os personagens que defendem, ambos vibrando no mesmo diapasão, observando o ritmo um do outro e, destarte, construindo um Adam bastante coerente e factível, em que o sarcasmo afiado é mesmo a grande marca. O Adam do presente, sempre alguns tons abaixo dos outros mortais, demora para se dar conta de que são a mesma pessoa, ao passo que o do futuro, a despeito da cicatriz embaixo do queixo e do relógio deixado de herança pelo pai, rememora as fraquezas daquele garoto, as suas próprias fraquezas, e conclui que tudo de que ele precisa é de amor e, o mais importante, tolerância. Bem ou mal, foi graças a esse menino meio ingênuo demais, vítima de sua própria bondade, que Adam se tornou o homem forte e determinado que conquistou tudo o que quis.

Até aí, foram exibidas as melhores partes do filme, mas como se trata de um enredo de ficção científica, as reviravoltas próprias do gênero, uma compilação meio previsível de “O Exterminador do Futuro” (1984), dirigido por James Cameron e “De Volta para o Futuro” (1985), levado à tela por Robert Zemeckis — e ainda reservando espaço para pílulas de “Alta Frequência” (2000), de Gregory Hoblit —, tomam o centro da narrativa, ponto em que os personagens de Mark Ruffalo, como Louis, o pai de Adam, e Zoe Saldaña na pele de Laura, sua mulher, são quase que literalmente jogados de um para o outro lado do cenário futurista sem grandes novidades, pastiche de algum dos incontáveis episódios de “Guerra nas Estrelas”, de George Lucas ou “Eu, Robô” (2004), de Alex Proyas. Os enfrentamentos de Adam e Laura contra a vilã Maya Sorian, de Catherine Keener, também chegam à mesa frios, com pelo menos quarenta anos de atraso, muito similares, para ser elegante, aos da saga de Lucas, embora bem coreografados.

O que “O Projeto Adam” tem de genuinamente significativo é sua capacidade de colocar em perspectiva uma mesma pessoa, sob um escrutínio tão invasivo que a faz parecer duas, o que cala fundo em qualquer ser humano com mais de doze anos de idade. Todos somos meio Adam Reed, em versões mais ou menos intensas, obrigados a suportar os golpes da vida e seguir em frente, na hipótese mais branda, ou fazer justamente desses golpes o estímulo para mudar tudo, de maneira radical. De preferência, sem ressentimentos e controlando a vontade de também criar nossos bodes expiatórios.


Filme: O Projeto Adam
Direção: Shawn Levy
Ano: 2022
Gêneros: Ficção Científica/Drama/Aventura
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.