O filme da Netflix que vai te conquistar desde a primeira cena e lavar sua alma Kerry Brown / Netflix

O filme da Netflix que vai te conquistar desde a primeira cena e lavar sua alma

A vida nos chega sem que saibamos o que exatamente temos a mostrar, sem que saibamos se somos capazes de suportá-la. Nossos dias sobre a Terra se apresentam como uma sucessão de eventos inesperados que nos colhem nas horas mais impróprias, trazendo em seu bojo ora prazer, ora situações infaustas, e mesmo sabendo de tudo isso, a gente não deixa nunca de esperar pelo inesperado da vida, ansiando, por óbvio, que nos sejam doces — ou que, ao menos, nos tenham clemência, nós, pobres mortais sem tempo para ser felizes. Temos nossas questões particulares, que não abrimos mão que continuem assim, muito particulares, muito bem guardadas, trancadas no porão do espírito, junto com nossos fracassos, nossas dúvidas e as incertezas que nem para nós mesmos temos a coragem de admitir. O gênero humano, com seus tantos dilemas existenciais, é decerto a forma de vida mais desgraçada da criação. No momento em que a felicidade se avizinha, enfim, burlando as regras absurdas que ditamos para nós mesmos, inventamos outra, a que diz que só seremos felizes, bem felizes, se houver quem permita nossa felicidade. Quando se percebe, numa tarde solitária se passaram décadas. Talvez essa seja a tragédia incontornável do ser gente.

“Nossas Noites” não se decide de imediato sobre o quer ser, tampouco para onde quer levar o espectador. Essa incursão silenciosa no mais fundo e no mais obscuro de duas psiques fustigadas pelo tempo e seus efeitos devastadores, que se estendem também para tudo quanto é físico, nem bem começa a manifestar uma tendência irresistível para o noir e já vai mostrando que não é exatamente aquilo o que quer dizer. Ou poderia ser um noir uma história em que se ouve da boca de Jane Fonda o convite a um homem, no caso Robert Redford, para que passe a noite em sua companhia, apenas para dormirem, como se vai se saber em seguida? A partir desse momento, o filme do indiano Ritesh Batra, de 2017, fica um tanto menos enigmático, sem prejuízo das surpresas que   nos reservam. Eles são bons nisso, acredite, e não é de hoje.

Dois dos maiores expoentes da era de ouro do cinema, os intérpretes de Addie Moore e Louis Waters estrelaram dezenas de clássicos, foram premiados com alguns Oscars, contracenaram três vezes e arrebataram público e crítica, trabalhando ora separados, ora juntos, mas sempre apresentando um desempenho admirável, que, felizmente, se repete aqui, refletindo essa afinação quase celestial. Há mais de meio século, esses velhinhos charmosos eram os dois recém-casados meio inconvencionais Corie e Paul de “Descalços no Parque” (1967), em que Gene Saks lhes toda a liberdade para que pirassem à vontade e deixassem claro à audiência que ser feliz era uma questão de talento, de autodeterminação, de regozijo pelas coisas mais simples da vida, um desdobramento óbvio do movimento hippie, que se espraiava da ensolarada San Francisco para os rincões mais gélidos e sombrios do mundo, uma resposta espontânea da juventude americana à Guerra do Vietnã (1955-1975). Hoje, grisalhos, mas nem tanto, com algumas rugas, mas ainda bonitos e cheios de vida e de vontade de queimar a lenha que ainda resta (e por sinal, ainda há bastante lenha a arder nas respectivas fogueiras de cada um), os intérpretes desses dois vizinhos, moradores de uma cidadezinha qualquer do Colorado, viúvos há algum tempo e respondendo de maneira algo distinta à solidão no ocaso da vida, provam que Addie e Louis podem contar com eles.

Batra se vale do livro do badalado romancista americano Kent Haruf (1943-2014), adaptado pelos não menos célebres Scott Neustadter e Michael H. Weber, a fim de elaborar um enredo leve, mas reflexivo. A trilha sonora de Elliot Goldenthal, com um banjo mavioso e o resgate de clássicos do “Highwaymen”, além da fotografia de Stephen Goldblatt, que valoriza luz e trevas da mesma forma, conferem à produção a aura de inocência que o cinema tinha quando Fonda e Redford começaram. Os conflitos de um romance entre dois senhores de idade provecta não provocam comoção, mas despertam o interesse do público, ávido por saber onde vai dar aquele acerto quase delirante, certamente recorrendo à memória e enxergando nos protagonistas o sucesso do casal de “Descalços no Parque”. E há mesmo qualquer coisa em Corie e Paul que quer se espelhar em Addie e Louis, mais no que diz respeito à personagem de Fonda. A alma verdadeiramente livre de Addie é quem permite esse (re)encontro, ao passo que o tipo vivido por Redford, homem à moda antiga quase em extinção, demasiadamente formal e cavalheiresco, entra na brincadeira, mas enxerga seu relacionamento com a agora vizinha e amiga íntima como um passatempo apenas. Ao voltar ao café frequentado por ele e todos os outros macróbios da cidade, Dorian, de Bruce Dern à frente — com quem a guru da aeróbica nos anos 1980 também dividiu os lençóis (e as tristezas da vida a dois) no cinema, em “Amargo Regresso” (1978), de Hal Ashby (1929-1988), que também remonta ao pesadelo americano no Vietnã —, ouve uma outra piadinha dos amigos, que não lhe disfarçam a inveja.

A consumação do romance acontece, Addie cura sua insônia, capricho de um corpo velho à procura de calor no meio da noite, o mundo não para de girar por isso — tanto que os fantasmas do passado volta e meia os assombram, personificados nas  figuras de Holly e Gene, de Judy Greer e Matthias Schoenaerts, os filhos dele e dela —, mas ainda que essa nova configuração de vida seja colocada à prova, alguma coisa neles se transformou. Como Jane Fonda e Robert Redford, Addie e Louis não têm de provar mais nada a ninguém, e continuam a viver, tão próximos quanto possível, momento que o desfecho melancólico de “Nossas Noites” nos faz supor (e torcer) que algum dia eles voltarão a partilhar a mesma cama.


Filmes: Nossas Noites
Direção: Ritesh Batra
Ano: 2017
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.