O amor está para a vida como a tempestade para o oceano. O encontro de um com a outra dá origem a um estado que não conhecíamos antes, completamente novo, um novo corpo em que não se pode mais distinguir os limites de cada um desses elementos. E quando da fusão resulta também uma boa porção de desequilíbrio emocional, a equação fica perfeita para histórias que encharcam os olhos do espectador.
O pulo do gato em “Por Lugares Incríveis” (2020) é levar o público a pensar que vai partir numa viagem pelos destinos mais disputados da Terra (ou mesmo dos Estados Unidos), ficar enfurnado em Indiana, no centro-oeste do país e acabar achando aquela uma viagem bem agradável. Mérito inicial do roteiro de Jennifer Niven, autora do livro homônimo de que a saiu a história, coescrito com Liz Hannah, mas a direção criativa de Brett Haley, famoso pelos enredos lacrimogêneos, deu ao filme o poder que ele precisava: fazer quem assiste acreditar que aquele lugarzinho meio desenxabido no coração da América fosse capaz de despertar paixões avassaladoras. A partir desse momento, Elle Fanning e Justice Smith seguram o bastão com firmeza, desenvolvendo uma química improvável à primeira vista.
Embora muito talentosos, Fanning e Smith não têm nada de mais: não são especialmente bonitos, não são donos de um carisma magnético, não se propõem a reinventar a roda. Mas Haley notou algo excepcional neles: juntos, são mais fortes, quiçá imbatíveis. A Violet de Fanning é uma garota que passou por um trauma que ainda representa uma ameaça perigosa, para sua saúde mental e sua vida, conforme se tem na introdução da trama, quando um Theodore Finch — ou apenas Finch, como ele prefere —, igualmente alquebrado, a encontra; Violet é agora a filha única de uma família endinheirada e branca, enquanto Finch se contenta com o amor quase incondicional da irmã, Kate — um belo desempenho de Alexandra Shipp, que tempera a narrativa bem no momento em que o melodrama rançoso começa a se avizinhar —, uma vez que a mãe não para em casa e o pai sumiu em condições que o próprio personagem de Smith esclarece com todas as letras, ainda que não precisasse; o componente racial não é uma questão aqui, mas se está falando dos Estados Unidos, e de uma região bastante idiossincrásica dos Estados Unidos, logo todo cuidado é pouco. Por um instante, com o desfecho já próximo, intuí que aquele chamego todo fosse se converter em alguma acusação criminal contra o rapaz, negro e visivelmente abaixo dela na escala social. Felizmente, pude respirar aliviado ao constatar que entre mortos e feridos, todos estavam a salvo — mas não por muito tempo.
Violet e Finch são os típicos personagens canhestros, malditos, esquisitos, repulsivos até. À medida que se tornam amigos, renunciando cada um às suas dores, pode-se saber um pouco mais a respeito deles, e a maneira como o diretor os mantém congelados, mas prontos para se entregar um ao outro e à audiência é um achado. Talvez Finch quisesse desde o início ser mais que apenas um grande amigo de Violet — garotas, cuidado: homens somos, à exceção deste seu humilde servo, do editor deste artigo e dos leitores da Bula, predadores sexuais inclementes, a exemplo de certo deputado estadual de São Paulo, que cruza o planeta se dizendo encarregado de uma missão humanitária, mas quer vocês sabem bem o quê —, talvez não. O fato é que os diálogos, disparados como balas num faroeste por um Justice Smith rápido no gatilho, plenos de citações de Virginia Woolf (1882-1941), ou seja, nada românticas, deixam a moça balançada. Quando Violet cede, enfim, e aceita a parceria para realizar um trabalho em grupo com Finch, the Freak, Rob Givens, o diretor de fotografia entra em cena e nos faz imaginar que Indiana e seus vilarejos são mesmo os tais lugares incríveis do título, talvez os mais fascinantes do mundo. As estradas e suas curvas que ligam o nada à parte alguma; a copa verde e laranja das árvores brilhando à hora dourada; os campos a perder de vista, tomados de vegetação rasteira e de plantações; a estação ferroviária escondida pelo breu pesado da noite, tudo é um convite ao ócio, criativo e sentimental, de que os dois se aproveitam a fim de se inspirar para a tarefa e para outras coisas.
É claro que quarentões calejados se comovem com os dramas intermináveis de dois adolescentes completamente perdidos, que se reencontram, graças à ajuda um do outro, e se percam novamente, dessa vez para sempre — e tanto mais aqueles em quem a vida passou rasteiras semelhantes, como eu, que já estava prontinho para escrever diatribes fervorosas contra o filme. Embora para cada espectador haja um filme que pinte as dores da alma enamorada com as tintas que lhe caem melhor, observando a faixa etária do público-alvo e os conflitos que advêm desse corte — “Meu Primeiro Amor” (1991), o autoexplicativo romance de Howard Zieff (1927-2009); Namorados para Sempre (2010), dirigido por Derek Cianfrance, e “Alguém Tem que Ceder” (2003), levado à tela por Nancy Meyers, para ficar nos que considero mais emblemáticos, ao menos por ora —, é impossível sair de “Por Lugares Incríveis” sem alguma cicatriz. A mim, me desce muito melhor O Lado Bom da Vida (2012), de David O. Russell, talvez o filme mais completo sobre o deleite de se apaixonar, a desventura de não ser correspondido, a sabedoria de identificar o momento de abdicar de um amor velho e falido para abraçar uma outra relação, por mais inusitada que pareça, justamente por ter o ousado condão de não deixar nada de fora: a obsessão por um amor que teima em não se realizar, transformada em obstinação, teima, até que esse sentimento se concretize, permeado pelo tema seriíssimo da doença mental, que sempre inspira cuidado. Se eu fosse um crítico rabugento e descrente da vida e do homem, diria que qualquer filme que se atreva a falar de amor, seus sucessos e malogros, está pelo menos oitenta anos atrasado, porque Bergman já disse tudo — e sendo ainda mais criterioso e ampliando a amostra, mais de quatro séculos, se se quiser incluir Shakespeare no pacote; como não o sou, reconheço que todo amor é a experiência de dois indivíduos, ou seja, dois mundos absolutamente novos que se harmonizam ou se chocam, portanto filmes de amor nunca serão de mais. Assim, “Por Lugares Incríveis”, com seus mocinhos saborosamente naturalistas, seu enredo pensado para entreter — mas não só, de acordo com o que se assiste no encerramento, que relaciona Finch e Violet a um lago misterioso, esse, sim, o ambiente mais envolvente da trama, e não por acaso o mais perigoso — e seu pano de fundo rico de sentido tem um espacinho no meu coração de pedra, façanha creditada à afinidade mágica de Elle Fanning e Justice Smith, além de coadjuvantes da pesada como Alexandra Shipp e Keegan-Michael Key, o coordenador pedagógico Embry, um Theodore Finch na meia-idade.
O recado que Brett Haley quer deixar é que ninguém conhece ninguém o suficiente, até porque não nos conhecemos a nós mesmos. Eficaz ao convidar o público a esse exercício de autorrevelar-se, o filme atenta para a necessidade de se perceber as miudezas que tornam a vida o grande tesouro da condição humana. Sem julgamentos, que sempre maniqueístas, conduzem nosso olhar para um ou outro lado, “Por Lugares Incríveis” ressalta, com toda a força, que uma superfície delicada, cheia de marcas, pode esconder um espírito que de tão irrequieto não cabe no próprio corpo e quer dominar o mundo. Só não sabe como.
Filme: Por Lugares Incríveis
Direção: Brett Haley
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10