O filme da Netflix que pode mudar uma vida, mas pouquíssimas pessoas assistiram

O filme da Netflix que pode mudar uma vida, mas pouquíssimas pessoas assistiram

Um livro de memórias que se concentra sobre o dia a dia de uma família ao longo de 14 anos pode ser tudo, menos linear. Estarão ali conquistas, fracassos, risos, choros, prazeres, dores — tudo o que os fez serem o que são, enfim. As lembranças mais plenas de sentido, as que se impõem sobre o passar dos anos e resistem à bruma do tempo ficam para sempre, e isso, por óbvio, não quer dizer que não firam. De quando em quando, é preciso abrir esse baú de ossos e desenterrar uma ou outra recordação, que não raro surpreende pela força que ainda tem. É justamente o tempo o que faz com que aquilo que vivemos passadas algumas décadas continue a doer, porque nos damos conta de que não é mais possível fazer nada. Só rir, ou chorar.

Deslocando-se entre 1997 e 2011, sem reverência por critérios cronológicos muito estritos, “Era uma Vez um Sonho” consegue equilibrar-se e mantém a precisão, ainda que o perigo do exagero e da caricatura o sonde diligentemente. O drama se preserva como tal, um drama, e não vira um dramalhão, e a grande sacada de Ron Howard é fazer com que uma e outra coisa estejam em permanente comunicação, quase a se tocarem. O filme é basicamente a história de um estranho no ninho, desconfortável sob sua própria pele, alguém que ama sua família, mas que chega à conclusão de que é impossível compreendê-los, tampouco endossar suas atitudes e muito menos querer ser como eles. E cujo grande conflito é desejar uma vida melhor de todo o coração, mas se ver constantemente enredado por situações que fogem ao seu controle, que poderia muito bem ignorar, mas que acabam por prendê-lo num laço de sangue apertado demais.

Esse tipo gauche é J.D. Vance, vivido por Owen Asztalos na primeira fase. J.D. é um garoto meigo, desembaraçado, mas sobretudo com um senso de justiça e honra que cultivou a despeito do meio em se criou. Sequências depois, J.D. é mostrado como um estudante de direito de Yale, uma das universidades mais tradicionais dos Estados Unidos. Seu novo intérprete, o excelente Gabriel Basso, conserva no espectador a simpatia despertada por Asztalos, frisando a naturalidade de J.D., um homem comum, batalhador, que continua valorizando a dignidade de princípios como o ar que respira, qualidades que certamente chamaram a atenção de Usha, a colega hindu-americana com quem mantém um namoro sólido, performance bem menos sublime de Freida Pinto, mas cativante.

Muito mais esforçado que propriamente talentoso, J.D. se desvencilha de enroscos de maior ou menor gravidade, sente que poderia chegar mais longe, não obstante sua educação básica cheia de buracos, sua formação cultural limitante, sua caipirice inveterada de redneck convicto, que nunca lhe permitiu despertar para detalhes aparentemente supérfluos e sem maiores consequências, mas que só podem ajudar, como aprender a ordem certa dos talheres dispostos à mesa num jantar que pode fazê-lo avançar umas boas casas no jogo da vida, bem como saber que, para harmonizar determinado prato, toma-se vinho branco, não tinto. Se mesmo com todas essas desvantagens, J.D. ainda contava com alguma chance de virar a mesa, a balança fica irremediavelmente descompensada por culpa da mãe, uma ex-enfermeira que nunca mais conseguiu se recolocar no mercado devido à dependência em heroína. 

Amy Adams passa a dividir com Basso o protagonismo da história. Sua Beverly, cheia dos altos e baixos do vício,  intoleráveis para as pessoas próximas, mas comuns — e mesmo divertidos — para quem os manifesta, sabe que é um peso para a família, sobretudo para J.D, mas está num estado tão lamentável que já não dispõe mais da competência para levar a sério um tratamento, problema que tenta resolver dobrando a dose, para ver se alguma solução definitiva, a pior possível, se insinua. Não faz muito tempo, Bev escapou a uma overdose, e embora pense que sua vida não interesse a ninguém, não seja matéria da pena de ninguém, seus parentes fazem de seu resgate o grande propósito de suas vidas. Esses grosseirões de uma cidadezinha montanhosa ao norte do Kentucky também amam.

Howard parte do argumento meio simplório, entre determinista e preguiçoso, de que estamos condenados a reproduzir os modelos de comportamento que observamos quando criança, o que tem um fundo de verdade — e de ciência, dado o conceito de projeção, cunhado pela psicanálise freudiana —, mas também não é uma situação da qual não se possa estar livre, com uma carga (ou uma sobrecarga) de autossacrifício, e a prova está entre eles mesmos. Mamaw, a avó de J.D., é uma sobrevivente; a sempre charmosa Glenn Close, involuntariamente alçada ao status de símbolo sexual quando do lançamento de “Atração Fatal” (1988), de Adrian Lyne, revela mais um quinhão de seu talento ao encarnar sua personagem, um desempenho mediúnico dada a semelhança com a Mamaw real. Irreconhecível, aparentando pelo menos vinte anos a mais graças ao trabalho primoroso de Eryn Krueger Mekash, responsável por envelhecer e afear também Adams, que ganhou alguns quilos para o papel, Close responde à altura quando o diretor lhe exige que mostre a agonia atávica de Mamaw. Numa sequência em flashback, emerge um passado de abusos, que quer ela queira ou não, contribuiu para a desdita de Bev. As famílias infelizes são infelizes cada qual a sua maneira.

Uma reviravolta no meio do filme dá uma pista do quão conturbada é a convivência entre esses personagens. É difícil acreditar que qualquer coisa boa frutifique ali, e que além de ressentimento e um ódio que cozinha, cozinha, mas nunca ferve não haja nada que os una. Entretanto, a maneira de que Howard e seu elenco se valem a fim de fazer aquele antro de mágoas mal curadas passar por uma família de verdade cai no gosto do público, mérito da direção sensata, quase cartesiana, que redunda em atuações ímpares. Malgrado cada um tenha a liberdade de tocar sua vida como quiser, os Vance permanecem juntos, muitas vezes rimando sina e ruína, a exemplo do que Fellini algumas vezes, em trabalhos como “Os Boas-Vidas” (1953) e Amarcordhttps://www.revistabula.com/43460-um-filme-para-se-ver-eternamente/ (1973). Passagens fulcrais de “Era uma Vez um Sonho” levam ao raciocínio irrefutável de que essa gentalha bronca, jeca, rude, desgraçada, pode não ter muito, mas eles têm uns aos outros. Em muitos momentos da vida isso faz toda a diferença.


Filme: Era uma Vez um Sonho
Direção: Ron Howard
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.