Ser mulher é um exercício de paciência, e mulheres sabem esperar como ninguém. Muito antes de coroar o estado feminil com a maternidade, aguardando por nove meses que uma outra pessoa se desenvolva em seu ventre, a mulher espera pela menarca, a primeira menstruação, e entre um e outro evento, ocorrem coisas fabulosas, que muitas vezes fazem com que queiram enfrentar o destino que se lhe impõe de um jeito meio determinista e a grande celebração do ser mulher, o ser mãe, vira uma outra coisa. Ninguém pode ter tudo, muito menos uma mulher.
“Prazer, Kalinda” é, antes de mais nada, uma lembrança quanto às renúncias que a mulher é obrigada a fazer ao longo da vida, especialmente no começo do século 20, num país que ainda se reerguia após o ciclo de destruição, fome e morte que se abateu sobre a Terra na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Fundada em 19 de fevereiro de 1947, a República Popular da Polônia soube tirar proveito da ansiedade por dias melhores, uma ideia fixa de qualquer cidadão, de qualquer classe social. É desse contexto, da mistura da esperança com a ousadia, que emerge Kalina Jędrusik (1930-1991).
O filme de Katarzyna Klimkiewicz, de 2021, tenta desvendar o mito por trás dessa mulher fatal, que incendiava os palcos do Leste Europeu nos anos 1960, estendendo seu poder de fogo para a cama de muita gente. O título original, “Porque há Sexo em Mim”, deixa de lado a dubiedade da resposta formal quando se é apresentado a alguém que não se conhece e põe as cartas todas na mesa de uma vez: a história de Kalina, Kalinda, num diminutivo afetuoso, só interessa a Klimkiewicz do ponto de vista das fofocas de bastidores, um ambiente irrespirável, tomado de camareiras abelhudas, colegas invejosas, chefes ressentidos. A carreira artística de Jędrusik vai ter de ficar para uma próxima.
Evidentemente, questões como promiscuidade numa época em que a aids era ainda um perigo intangível e a penicilina já se estabelecera como a panaceia para todas as doenças sexualmente transmissíveis há mais de trinta anos, na esteira da Primeira Guerra Mundial (1914-1918); o início do processo de afirmação da mulher, que começava a ser o que bem entendesse — professora, dona de casa, freira, prostituta, pilota de avião ou, por óbvio, artista —; e a hegemonia masculina sobre tudo isso, com homens que condescendiam que as mulheres partilhassem com eles o mesmo espaço, vêm à baila na história, com maior ou menor ênfase. Contudo, o que fez de “Prazer, Kalinda” uma febre entre o público polonês foi a forma encontrada pela diretora de oferecer o erotismo da trama, numa embalagem suave, em que quase tudo resta apenas insinuado no roteiro, coescrito com Patrycja Mnich. Na pele de Kalinda, Maria Dębska faz sua personagem se deixar levar pela expressão máxima de sua condição de mulher sensual, ao passo em que a jovem performer é aprisionada nesse estereótipo, preço que ela (e qualquer outra figura feminina) concorda em pagar para desfrutar do sucesso. Há um único nu propriamente sexual ao longo de 105 minutos de projeção, filmado com visível denodo, e isso não é problema algum: “Prazer, Kalinda” continua a ser uma narrativa que preza pela exaltação ao erótico, quiçá até mais por ser tão sóbrio.
Em 1963, Kalina Jędrusik é uma das celebridades mais famosas da Polônia. Muito popular, sobretudo entre os homens, Dębska capta a essência teatral da personagem, sempre um ou dois uísques acima do resto dos mortais e muito consciente de sua aura de diva. Aos 33 anos, a “Marilyn Monroe polaca”, como seus fãs passam a designá-la, está no ponto, no auge; não tem o menor pejo de se apresentar em vestidos perigosamente decotados, de provocar a plateia, no seu caso sempre dividida, entre homens empolgados — alguns além do conveniente — e mulheres, ameaçadas, algumas ultrajadas mesmo. A estrela maior do Old Gentlemen’s Cabaret absorve num corpo curvilíneo os anseios de poloneses que represaram suas fantasias por quase duas décadas, desde o fim da Segunda Guerra. A intimidade dessa mulher inatingível vem à superfície num triângulo amoroso bem elaborado, em que se divide entre o marido, o escritor Stanisław Dygat, interpretado por Leszek Lichota, e Lucek, o músico mais novo vivido por Krzysztof Zalewski. É a esse propósito que se dá a grande guinada do enredo, com a entrada em cena de Ryszard Molski, um terceiro postulante de seus carinhos.
O novo chefe de entretenimento da televisão em que Kalinda trabalha, o ator frustrado a que Bartłomiej Kotschedoff dá vida, passa a perseguir a performer, subordinada a ele, como todo o elenco. Aqui, anunciam-se novos pontos para análise, espantosamente atuais. O comportamento predatório de Molski, primeiro como o que hoje se conhece como stalker, depois avançando sobre ela a fim de tentar uma conquista amorosa — ou meramente sexual —, um assediador contumaz, perverso e vingativo ao não tirar dela o que queria, é o princípio do fim para Kalinda. Mais e mais acuada, a vedete termina por ser afastada dos quadros da emissora, sob o pretexto de se preservar a “moral e os bons costumes”. Se ainda hoje, passados sessenta anos, homens cafajestes se aproveitam de mulheres numa posição hierarquicamente inferior, tanto pior em se tratando de uma mulher notabilizada pela lascívia, que na sua visão de mundo patologicamente deturpada, deveria estar sempre disposta ao sexo, mormente com quem lhe paga o salário. Lixo.
Uma segunda reviravolta do filme, uma verdadeira volta por cima, mostra uma Kalinda mais contida depois de toda a campanha deletéria a que fora submetida, porém igualmente mais madura, por ter sido capaz de suportar bem os golpes. Na figura de Kalina Jędrusik, “Prazer, Kalinda” presta a merecida homenagem a essas mulheres aparentemente frágeis, mas no fundo destemidas, que muitas vezes têm apenas o talento ou o carisma a seu favor. E elas são mais fortes do que pensam.
Filme: Prazer, Kalinda
Direção: Katarzyna Klimkiewicz
Ano: 2021
Gêneros: Musical/Drama/Biografia
Nota: 8/10