O filme épico na Netflix que vai te esmagar enquanto ensina uma lição de história

O filme épico na Netflix que vai te esmagar enquanto ensina uma lição de história

“A Ilíada”, de Homero (898 a.C. – 928 a.C.), é, decerto, o poema épico mais célebre de todos os tempos. Retratando os desdobramentos da guerra entre dois povos outrora muito próximos, o de Troia, na Turquia, e o que habitava a cidade-Estado de Esparta, território da Grécia Antiga, “Troia” (2004), por estranho que pareça, alonga-se pouco sobre os bastidores desse conflito, preferindo, por óbvio, fixar-se na razão da contenda, um escândalo rumoroso o bastante para inspirar William Shakespeare (1564-1616) em “Troilo e Créssida” (1609), que por seu turno achou mais graça em explorar os anos finais das batalhas.

A ousadia de Wolfgang Petersen em se confessar seduzido pela história a ponto de querer filmá-la é digna de louvor, entretanto tem deficiências significativas. O diretor alemão ignora a influência determinista dos deuses sobre a vida da população grega de antanho; escolhe, numa manobra narrativa arriscada, converter os personagens da epopeia de Homero em astros de Hollywood — quando deveria se dar o contrário — e abusa da computação gráfica. Ninguém exigiria que o roteiro de David Benioff insinuasse a contratação de uma horda de cem mil figurantes, cinquenta mil para cada lado, mas o que é levado à tela, uma sucessão atordoante de efeitos especiais, acaba se revelando um tiro no pé.

Felizmente, Petersen não tenta reinventar a roda e descreve, didaticamente até, a lenda sobre a invasão da cidade-fortaleza, surpreendida pelo exército dos gregos Menelau de Esparta e Agamenon de Micenas, a fim de resgatar Helena, a rainha espartana, das mãos de Páris, o príncipe troiano que se enamorara dela. O mais absurdo no enredo original é que a aproximação entre Páris e Helena se dera durante uma missão de paz, mais uma lembrança das civilizações formadoras da humanidade quanto ao perigo de se deixar levar pelo sentimento, por mais forte que ele se apresente e por mais belicosa que seja a personalidade dos amantes. O amor — ou que se acredita como tal — pode ser tão mortífero quanto a guerra, momento em que se deve distinguir esta daquele, malgrado existam homens que só se realizam ao experimentar esses dois prazeres, o que simboliza a vida e o que o remete diretamente à morte.

Esta é a descrição de Páris. Orlando Bloom personifica a figura desse homem poderoso, na flor da idade, que não se sente vivo sem ter uma conquista da qual jactar-se. A guerra é um sonho que se torna realidade para o troiano, que não abdica nem da vitória nem da companhia de Helena, vivida por Diane Kruger, que evidentemente, ao contrário do que seguem dizendo sabidos e sabidas ao redor do mundo ainda hoje, não foi sequestrada. Embora tivessem idades próximas, Helena era já casada quando aceitou ir embora com seu salvador, ainda que não se saiba do que exatamente cria estar sendo salva. A decisão de Helena — porque me recuso a admitir que não tenha sido ouvida por Páris em momento algum — pode ser analisada sob diversos pontos de vista, que a enaltecem ou detratam-na. Por pior que fosse seu casamento, a rainha de Esparta se locupletava de alguma maneira, seja pelo dia a dia de fausto que o reino governado por Menelau, interpretado em “Troia” por um Brendan Gleeson dedicado, lhe proporcionava. Não se pode cravar com absoluta convicção que Helena renunciaria ao luxo de sua condição de rainha de Esparta mesmo se não soubesse da linhagem real (e, por conseguinte, igualmente divina) do novo amor; o fato é que vai com Páris e sofre, muito mais que ele, o estigma da mulher que abandona seu lar, uma pioneira torta do feminismo. O relacionamento entre os monarcas de terras distintas não era bem-visto por nenhuma das famílias, o que Heitor, o irmão de Páris, explicitava sem receio. Eric Bana rouba a cena no papel desse homem um tanto apoquentado por dilemas morais que “Troia” sequer arranha. Guerreiro muito mais hábil que o irmão caçula, mas preterido pelo pai, Príamo, a guerra que o Heitor travava era consigo mesmo, contra o rancor que não se permitia nutrir por Páris.

O fascínio de Helena por Páris é, sem dúvida, o mote central do trabalho de Petersen, mas o filme, justiça se lhe faça, tem méritos mais vultosos. A atuação de Brad Pitt é, para dizer pouco, surpreendente, em que pese o ator ter se empenhado pelo personagem muito antes que as filmagens tivessem início. Sempre que seu Aquiles está em cena se tem a certeza de que seguir-se-ão aqueles momentos memoráveis do cinema de sandália e espada, encabeçados por um intérprete cuja competência rivaliza com a beleza em dada altura da narrativa, mas se lhe sobrepuja, o que Victor Mature (1913-1999) já havia feito em “O Egípcio” (1954), clássico existencialista de Michael Curtiz (1886-1962), trajetória semelhante também a de Clint Eastwood em seu tempo de anti-galã dos incontáveis faroestes que protagonizou, destaque para “Três Homens em Conflito” (1968), de Sergio Leone (1929-1989). A esse propósito, e impossível não traçar um paralelo entre a mitologia grega antiga e o cinema western americano, em que se denotam, entre um arranca-rabo e outro, embates idiossincrásicos de fundo filosófico, quase sempre apontando para a dificuldade —seja de homens comuns, seja de príncipes, reis ou guerreiros mitificados graças à bravura invulgar — de contornar um cenário de degenerescência da moralidade e se impor pela correção de caráter. Ainda que tal postura implique deixar um rastro de sangue pelo caminho.

Impossível também é não se emocionar com Peter O’Toole (1932-2013), um dos maiores atores do século 20, na última quadra da vida, sem fazer distinção entre o Lawrence da Arábia que o tornou uma celebridade em todo o mundo no clássico de mesmo nome dirigido por David Lean em 1962, e o velho rei Príamo de Troia, que reivindica o cadáver de um dos filhos, morto em combate e levado como uma espécie de troféu. O duelo verbal entre Príamo e Aquiles, vítima daquele sentimento dialético de que se falava no parágrafo anterior, é disparado o melhor trecho do longa, uma prova do rigor artístico de Petersen e Pitt, e um deleite que O’Toole oferece à audiência, uma vez que há muito não precisava provar nada a quem quer que fosse. Textos bem ditos e personagens que os sustentem importam muito mais que o corre-corre, a pancadaria e a eficiência dos computadores em filmes de guerra.

“Troia” termina da forma que todo mundo sabe, e ao cabo de quase duzentos minutos nos envolvemos com a história, como se fôssemos troianos ou gregos ou apenas candangos ou cariocas seduzidos por uma boa história, que por pretensiosa, patina um pouco, mas nem por isso falta de brilho. Como o tal cavalo de madeira recheado de soldados gregos, Wolfgang Petersen invade corações e mentes e faz um estrago considerável. Resista quem puder.


Filme: Troia
Direção: Wolfgang Petersen
Ano: 2004
Gêneros: Guerra/Ação/Romance
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.