Cativante e amargo até o fim, filme da Netflix te levará para dentro dele e o perturbará pelo resto de sua vida

Cativante e amargo até o fim, filme da Netflix te levará para dentro dele e o perturbará pelo resto de sua vida

A política anda cada vez mais acessível. Qualquer demanda, da paz mundial aos direitos dos animais, passando pela emancipação feminina e pela igualdade étnica, são incontáveis as chances de se assistir ao nascimento de um grupo político com prazo de validade pré-estabelecido, militando nos espaços públicos, clamando por atenção, primeiro de quem circula nas altas esferas, e logo em seguida dos demais cidadãos comuns. Concordar com posturas que no fundo nos enojam, desejando de todo o coração que dada parcela de indivíduos se aperceba do que julgamos um equívoco, uma crueldade, uma aberração, e mude de comportamento, assim como sua visão de mundo, seu jeito de encarar a vida, e, por óbvio, passe para o nosso lado não tem nada de novo. Enquanto tomamos um cuidado extra para que não nos tachem de intolerantes — esse também um comportamento que fede a autoritarismo —, entendemos que há cenários que nunca conseguiremos transformar, por mais sorrisos desarmados ou mais estendidas de que queiramos nos valer. Nesses casos, existem duas saídas possíveis: conviver com o diferente ou eliminá-lo.

“Nocturama” é um filme que demanda uma carga adicional de empatia e mesmo paciência da parte do espectador. Aqui, Bertrand Bonello, um expert em apontar a hipocrisia e a fragilidade de certos discursos em trabalhos de vívido simbolismo, não raro levando sua história para o terreno instável do absurdo, apresenta uma gangue de terroristas completamente dissociados de qualquer ideal, a não ser o de épater la bourgeoisie, escandalizar por escandalizar, inclusive a alta classe média, de que são frutos diretos. Trabalho de composição sociopolítica altamente refinado, “Nocturama” quer, antes de mais nada, jogar à cara de quem o assiste umas boas verdades, como a do perigo de um capitalismo inconsequente, em que todos os anos milhões de pessoas se tornam consumidores vorazes, ávido por comprar sem a menor culpa ou prurido moral; a da deficiência dos regimes democráticos em todo o planeta, sempre incapazes de representar e defender a todos; e da ascensão de células de miniditadores, inconformados com essas evidências e, também por isso, dispostos a encampar a abjeção de ações baseadas na ameaça e na execução de castigos físicos, muitas vezes mortais, que justificam sob o argumento da liberdade de expressão, cinicamente manipulado.

Bonello, realizador de “Saint Laurent” (2014) e “L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância” (2012), faz pouco de ideologias ou das delicadezas da psicologia ao retratar tipos que se fazem do propósito irracional (e para eles grandiloquente) de instalar bombas e disseminar pânico e morte entre inocentes em Paris. Esses personagens, sobre os quais não se debruça em particular porque lhe interessa mesmo é o todo, têm uma insatisfação existencial, uma inconformidade de viver que nunca se nos desvela por completo; não obstante, suas emoções, ideias e atitudes são analisados com lupa, por meio de flashbacks precisos e uma montagem frenética, que dá a impressão de que o editor suprimiu propositalmente os trechos finais de alguns diálogos. O diretor não se entrega a soluções fáceis como recorrer a inserção de cenas dos membros do bando em apuros com os pais para supostamente justificar a banalidade do mal de seus personagens; por outro lado, Bonello não quer um público que o siga incondicionalmente, aceitando as escolhas erradas dos terroristas — e quiçá até as aprovando — ou, ao contrário, detrate-os logo de cara. O que lhe interessa é a polêmica, na acepção mais nobre da palavra.

O filme, lançado em 31 de agosto de 2016, quase vinte meses depois dos ataques covardes, em 7 de janeiro de 2015, contra a redação do “Charlie Hebdo” — publicação famosa por reunir em suas páginas caricaturas e artigos satíricos a respeito de qualquer assunto —, descreve em detalhes cirúrgicos toda a preparação para a ofensiva do grupo, tão irrelevante que nem  tem um nome. Aos poucos, cada uma daquelas figuras malditas vai ganhando corpo e é, afinal, exposta sob uma identidade própria. Andre, interpretado por Martin Petit-Guyot, não é exatamente o líder do bando (se é que essa função cabe a alguém), mas é quem mais se destaca na organização. Extremamente metódicos, eles quase nunca desistem e hesitam ainda menos, cumprindo os encargos que lhes foram atribuídos: o casal David e Sarah, vivido por Finnegan Oldfield e Laure Valentinelli, limpa o 28º e 29º pavimentos de um prédio de escritórios, interditados para reformas, enquanto Greg, de Vincent Rottiers, mantém os colegas a salvo dos seguranças, e Sabrina, a expressiva Manal Issa, desvia uma colheitadeira de frutas para subir à estátua de Joana d’Arc, na praça das Pirâmides, encharcar o monumento de um líquido inflamável. Até que tudo saia como o esperado, gastam uma fortuna em butiques, fraudam o acesso a funcionários do shopping onde vão se esconder, deslocam-se de um a outro ponto da cidade misturando às turbas no metrô e se comunicam por celulares devidamente descartados. Quando a primeira etapa da operação está concluída e os explosivos foram todos espalhados pela capital francesa, inclusive em prédios públicos, eles esperam que a noite caia e se concentram no shopping, que transformam num imenso parque de diversões para pequenos burgueses.

Desse ponto até o desfecho sangrento, Bonello desfralda ainda mais o aspecto de contestação política e de costumes de “Nocturama”, registrando o deslumbramento daqueles meninos grandes num ambiente de alto luxo, de que podem dispor como quiserem — pelo menos até que o dia amanheça. Há quem se banhe em perfume importado, os que experimente maquiagens caras, aqueles que trocam de roupa a todo momento, mas essa falsa celebração ao bem viver também cansa, e quando se entedia de tudo e sai para fumar um cigarro, David convida Jean-Claude, o mendigo de Luis Rego, a entrar e igualmente tirar proveito daquele Éden corrompido, uma iluminação de seu roteiro. Único a esboçar alguma consciência social e alguma sensatez, Jean-Claude titubeia, mas acaba aceitando o convite, levando consigo a mulher, Patricia, de Hermine Karagheuz (1938-2021). Mais simbólico, impossível.

Disparando contra uma porção de dogmas, fulminando a vida na era da informação rápida e descartável, os expedientes democráticos cada vez mais inócuos, a loucura pura e simples que degringola disso, Bertrand Bonello carrega nas tintas, mas alguém tinha de fazê-lo. Ao se passar pelo simples retrato de garotos ricos e perdidos, “Nocturama” é um dos filmes mais capciosos da história do cinema, justamente por empregar artifícios que sugeriam um resultado, mas levam a outro. Cuidado com ele.


Filme: Nocturama
Direção: Bertrand Bonello
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 10