Envolvente e inteligente, filme da Netflix prende o espectador do início ao fim e o leva a uma viagem sem volta Sabrina Lantos / Netflix

Envolvente e inteligente, filme da Netflix prende o espectador do início ao fim e o leva a uma viagem sem volta

Aludindo ao argumento de que todos nós, em algum momento da vida, assumimos outras identidades — e alguns durante toda a vida —, “Sombra Lunar” (2019) funde algumas produções do gênero, como “Seven” (1995), dirigido por David Fincher, e “O Silêncio dos Inocentes” (1991), de Jonathan Demme, clássicos cada um a seu modo, e resulta original. O filme de Jim Mickle consegue, em diferentes passagens da trama, que o espectador se esqueça de que tem diante de si um enredo de ficção científica, tão verossímil e comum, no melhor sentido, é a história. Há duas décadas, Mickle vem mostrando que tem rara habilidade em fazer de crimes confusos, que encerram questões ainda mais intrincadas, trampolim para mergulhar de cabeça nesses temas tão complexos, o que nem sempre agrada. Vencido o imenso estranhamento inicial, a sensação que fica (e recrudesce) é que o diretor pretende nos chacoalhar para certa evidência da vida que estamos a deixar ficar sem a devida análise, erro que nos ajuda a reparar oferecendo-nos o ferramental adequado, mas não de graça.

Quanto mais bizarro um filme, mais confiáveis têm de ser seus atores, os responsáveis por nos posicionar no lado certo da história, despertar em nós os sentimentos a que precisamos dar vazão, acender as lâmpadas mais opacas do pensamento e, enfim, girar a chave correspondente à mudança. Michael C. Hall e Boyd Holbrook têm capacidade de sobra para tanto, malgrado se percam, os dois, em diferentes etapas do roteiro de Gregory Weidman e Geoffrey Tock, refazendo o bom caminho a tempo, graças à direção firme de Mickle. Holbrook é Tom Lockhart, policial da Filadélfia que sonha com a promoção a detetive que vai dar um pouco de sentido a sua vida, além de lhe proporcionar um salário menos humilhante, o que seria bastante oportuno, uma vez que a mulher, Jean, de Rachel Keller, espera um filho dele.

Estamos em 1988, numa noite de trabalho duro para Lockhart, que se depara com a ocorrência mais grotesca jamais vista na maior cidade da Pensilvânia, nordeste dos Estados Unidos. Pouco antes de Jean começar a sofrer com as dores do parto, o aspirante a investigador encontra um motorista de ônibus, um pianista e um cozinheiro mortos, ao mesmo tempo, de maneira violenta. Uma perfuração na nuca é o ponto de contato entre os três crimes, cuja autoria aponta para a personagem de Cleopatra Coleman, uma garota que se destaca da multidão por usar um moletom azul com capuz. Lockhart e Maddox, seu parceiro, um desempenho convincente de Bokeem Woodbine, vão atrás da moça e se dão conta de que ela sabe algumas coisas sobre Tom, até que o bebê que sua mulher espera é menina. O grande questionamento que Mickle faz aqui é acerca da suposta proximidade entre os personagens de Holbrook e Coleman. Eles teriam sido amigos em alguma quadra da vida, e acabaram se afastando? Por quê? Estariam escondendo alguma coisa, um do outro, da polícia? Eram mais que amigos? Parceiros no crime, talvez? E a partir dessa névoa de mistério que o diretor deseja trabalhar o texto de Weidman e Tock, com fluidez e mantendo a narrativa sempre maleável a alguma alteração inesperada. Deslocando a ação nove anos à frente, para 1997, o cenário muda, mas os eventos criminosos se preservam. Um sujeito que se mostra um grande admirador do assassino original repete as carnificinas de 1988, mas Lockhart não tem muita certeza quanto a isso. O investigador também trabalha com a possibilidade de os homicídios serem cometidos pelo mesmo indivíduo, como se observasse uma espécie de ritual satânico, o que parece ser um risco não para a população da Filadélfia apenas, mas para toda a humanidade.

A entrada em cena de Michael C. Hall leva “Sombra Lunar” a outras altitudes. Holt, o personagem de Hall, é o chefe imediato de Lockhart, além de seu cunhado — um clichê perdoável, se confrontado com o que Mickle quer elaborar. A figura de Holt, o policial acomodado, tão aferrado a picuinhas da burocracia quanto a seu cargo, conseguido mediante um escambo de consciências, sintetiza à perfeição a falência de certas instituições, em qualquer parte do mundo, corroídas pelo germe da corrupção. O superior pouco sensível e até meio burro, que mantém nos porões os subalternos que considera mais talentosos, é o papel certo para o intérprete certo. Popular no Brasil devido ao sucesso da série “A Sete Palmos”, exibida pela HBO entre 2001 e 2005, Hall está confortável no arquétipo do homem meio sombrio, que transita das trevas para a luz, variando os ambientes sem distinguir muito bem onde se acha, tomando por esteio a vastidão do material aprimorado por Jim Mickle. Seu Holt não se contenta em se restringir à periferia da história e avança o proscênio, sendo fácil ao público absorver sua essência perversa, que, de fato, capta todas as atenções. 

Como se pode depreender do que veio até aqui, “Sombra Lunar” não é o filme da vida de Mickle — “Somos o Que Somos”, com carga de doidice equivalente é infinitamente superior —, mas dá de goleada em muito cult que recebe o epiteto sabe Deus por que, se não tem o poder de enviar o espectador aquele tempo em que foi lançado e, muito menos, se destaca pelo refinamento estilístico, apuro estético ou linguagem inovadora. Este trabalho de Jim Mickle cumpre com folga os três requisitos, aproveitando-se do sci-fi para valorizar o noir, sem, contudo, deixar de lado a sátira social a que se propunha no princípio. A fotografia de David Lanzenberg, que nos instantes de maior tensão evidencia o azul-petróleo visto em quase todas as produções da franquia “Batman”, é um presente inesperado ao longo dos 115 minutos de projeção, reafirmando a personalidade de um diretor sem medo de sombras. Nem do escuro.


Filme: Sombra Lunar
Direção: Jim Mickle
Ano: 2019
Gêneros: Ficção Científica/Suspense/Policial
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.