Há um ditado russo que diz: “Não vá ao mosteiro de outra pessoa com seu próprio livro de regras”. Significa mais ou menos assim: dance conforme a banda tocar; suas vontades não se sobrepõem às regras do lugar em que você está.
A Ucrânia é o segundo maior país da Europa em território. Parte de sua área já esteve sob domínio búlgaro, russo, polaco e soviético, em diferentes períodos de tempo. Obteve sua independência definitiva da União Soviética em 1991, após a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da cortina de ferro.
Embora as movimentações populacionais, na época da Guerra Fria, evidenciem um ímpeto de fuga do leste para o oeste, este texto não está aqui para provocar debates sobre políticas públicas consequentes da revolução bolchevique, tampouco sobre as reações a ela. Estou aqui — após um longo e tenebroso inverno de falta de inspiração (pelo qual me penitencio) — para me gabar de ter avisado aos navegantes que uma pandemia não melhora o ser humano.
E não me entendam mal: não sou dessa espécie de pessimistas que detrata a espécie humana por sua natureza (pobre Rousseau, que nos comparou a feras selvagens enternecidas com suas crias); mas também não acho que esse é o melhor dos mundos em que poderíamos viver, como nos disse Voltaire (pelas palavras de Cândido, o otimista) em resposta a Leibniz. Este é apenas… o mundo em que vivemos.
E nele — neste mundo em que vivemos — há russos que não observam seus próprios ditados: enquanto discutimos se a Guerra detonada por Putin é certa ou errada, o presidente da Rússia invadiu a casa alheia e está lá decidindo quem deve viver ou morrer; quem deve estar em cada território.
É claro que haverá quem diga que está tudo ok com a humanidade. Malvado mesmo é só o Putin e essas suas atrocidades. Engano: enquanto “especialistas” dizem que a solução da guerra passa por um diálogo entre Rússia e Ucrânia (imagino que dentre as hipóteses descartadas para se chegar a essa conclusão estaria um diálogo entre Mônica e Cebolinha para resolver sobre a posse do coelhinho azul e se suas orelhas devem ou não estar amarradas; ou mesmo decidir tudo no tabuleiro durante uma partida de War), há quem defenda que os invadidos devem parar de se defender para que isso aconteça, enquanto seus prédios residenciais estão em chamas e montes de civis vão sendo mortos.
E o que mais me assusta — pelo menos a mim, porque, afinal, assustar-se ou não com qualquer comportamento humano sempre será uma decisão, pelo menos em parte, moral – é uma velada (às vezes descarada mesmo) defesa da legitimidade dos atos do invasor por supostos desvios de conduta por parte dos invadidos: desde células neonazistas localizadas (já houve – e talvez ainda haja – neonazistas até em Israel, senhores!) até as pretensões da Ucrânia de se integrar à União Europeia e à OTAN, o que, como é evidente, era pretendido para se proteger justamente do que está a acontecer.
E é assim que é: nada vai mudar, tampouco frear Putin e sua sanha expansionista enquanto continuarmos dizendo que “ele é um ditador sanguinário, mas… veja bem, pela teoria realista nas relações internacionais, seus atos são compreensíveis…” Não sei, não sei, mas desconfio, bem ao estilo Riobaldo, que nem Maquiavel convenceria alguém de que é legítimo impedir que o vizinho se arme e se precaveja de um ataque, porque, afinal, se ele o fizer, meu ataque pode se frustrar.
Enfim, conta-se que há uma coluna russa de cerca de sessenta quilômetros de extensão em local próximo a Kiev e que o invasor teria usado — ou ameaça usar — armas terrivelmente destruidoras, como bombas termobáricas e bombas de fragmentação.
Há relatos de que as armas termobáricas, por exemplo, são capazes de evaporar tudo que está vivo em sua volta, o que me remete a uma Guerra muito mais antiga, mitológica até: o cerco grego à cidade de Troia, seguido da invasão maquinada por Ulisses e seu cavalo de madeira.
Era uma guerra mais romântica, claro, mas nem por isso mais ou menos legítima: fosse para recuperar a bela Helena ou apenas para ter dominância sobre o Mar Egeu, lanças, espadas e flechas também matavam, e significavam gregos dizendo a troianos como deveriam dançar em seu próprio território.
Mas ali houve, segundo a narrativa de Homero, uma das cenas que mais ilustram o caráter do que veio a representar, até hoje, o homem ocidental, este ser tão demonizado por quem quer impor que todos suportemos um modus vivendi diferente sem nunca tê-lo experimentado: falo sobre a hospitalidade, o respeito aos mortos e a solidariedade com a dor alheia.
Isto foi quando Príamo desceu de seu trono e, com a ajuda de Hermes, foi até a tenda do poderoso Aquiles implorar-lhe que devolvesse o corpo vilipendiado de Heitor, morto pelo grego em batalha individual. Depois de expor seu troféu humano e vingar a morte de seu primo Pátroclo, mesmo o orgulhoso Aquiles rendeu-se à humilhação a que se submeteu o rei troiano.
Na narrativa escrita que a história nos legou da poesia de Homero, Príamo não precisou de muitas palavras para suplicar a Aquiles a restituição do corpo de Heitor, mas apenas de lembrar-lhe dizendo: “Lembre-te, ó Pelides, o idoso pai, como eu posto à soleira da pesada velhice. Por vizinhos talvez opresso, defensor não tenha; vivo ao menos te sabe, e folga e espera ver tornar cada dia o egrégio filho.”
Numa linguagem mais hollywoodiana, o roteirista David Benioff reelaborou a mesma fala, na película de 2004, numa cena que é frequentemente reconhecida como um dos pontos altos do (irregular) filme: “Devolva-o a mim. Ele merece a honra de um funeral apropriado, você sabe. (…) Quantos primos você já matou? Quantos filhos e pais e irmãos e maridos, quantos, bravo Aquiles? (…) Seu pai teve a sorte de não viver o bastante para ver o filho morrer. Você tirou tudo o que eu tinha. Não posso mudar o que aconteceu, é a vontade dos deuses. Mas dê-me essa pequena misericórdia: (…) deixe-me lavar o corpo dele, deixe-me fazer as orações, deixe-me colocar duas moedas nos olhos para o barqueiro…”
Confesso: vou às lágrimas até hoje quando revejo a cena, assim como me debulho quando revejo aquela entre Jesus e o bom ladrão no filme dirigido por Mel Gibson. E assim, exatamente como o politeísmo grego e o cristianismo encontram ressonância benéfica na mesma mente que habita em mim, inimigos podem se respeitar, pois Aquiles devolveu a Príamo o corpo de Heitor, “o domador de cavalos”, e a cena final da Ilíada de Homero é justamente a execução das suas exéquias.
O que me traz de volta ao presente: enquanto há os que dizem que não há certos e errados na guerra, que não há mocinhos e bandidos, eu digo: há um tirano invasor e há um povo invadido, com pais vendo seus filhos, primos, irmãos e sobrinhos (militares e civis) morrendo em bombardeios. E alguns sequer poderão exequiar seus familiares, se for verdadeiro que bombas termobáricas sejam ou tenham sido lançadas. Inimigos podem ser inimigos e russos e ucranianos não precisam se amar. Guerra é guerra, pessoas vão morrer, mas há, sim, quem está errado nessa história, e é quem pisou no mosteiro de outra pessoa com seu próprio livro de regras, impondo suas vontades e dizendo que os monges não podem se defender.