Exagero e loucura andam de mãos dadas, no cinema e na vida. São essas variações de tom, do rosa ao negro e vice-versa, mediadas pelo pouco ou nenhum pejo de até resvalar no clichê, mas só para passar com tudo por cima dele e aprofundar a narrativa sobre assuntos delicados, controversos, ingratos, que diferem os filmes que contam dos que têm direito a seu lugar ao sol, desde que convençam o espectador disso. Essa é uma das maiores dificuldades para um diretor.
“O Limite da Traição” sai do lugar-comum reiteradas vezes, valendo-se de cortes inesperados, montagem frenética e a opção de colocar bem e mal cara a cara, sem o compromisso de encampar essa ou aquela versão de imediato. Se fosse possível definir com apenas uma palavra a história de Tyler Perry, essa palavra seria insano. Por essas e outras que o roteirista e diretor, domando a loucura dentro de si e fazendo-a trabalhar em seu benefício, tornou-se o homem mais bem pago do entretenimento, segundo a revista “Forbes” em ranking de 2011.
Perry bem que poderia monopolizar a trama, deixando-se cada vez mais autorreferente — a exemplo do que fazem pencas de diretores —, mas como dividir é o primeiro passo para multiplicar, ele fica de banda, desempenhando uma participaçãozinha afetiva e protocolar, a fim de que seus atores tenham todo o espaço e todo o tempo necessários para elaborar seus personagens, qualidade de que nem todo cineasta tem. Nove anos depois da matéria da “Forbes”, em 2020, essa produção de Tyler, finalizada em somente cinco dias em seu estúdio em Atlanta, segundo a lenda, reinterpreta temas que se transformaram em verdadeiras obsessões para ele. A protagonista, uma mulher que professa sua religião fervorosamente, é vítima de um erro judicial e tenta não se entregar. Grace, vivida (e mesmo defendida) por Crystal R. Fox, é a mulher de meia-idade concebida pelo século 21 em todas as suas minudências. Absorvida pelo trabalho numa instituição financeira — e longe de ver nisso motivo para qualquer reclamação —, a personagem central do longa se deixa envolver por Shannon DeLong, que conhece romanticamente num vernissage, sem saber que se trata do próprio artista exposto, autor de fotos sobre a Etiópia e sua gente. Interpretado com igual energia por Mehcad Brooks, DeLong consegue quebrar a redoma de desconfiança que protege Grace de mais dissabores na vida amorosa, usando de toda a paciência que os homens apaixonados costumam ter. O argumento da diferença de idade, oficialmente de quase vinte anos, vem à superfície sob a forma de flashes, sem que seja necessário conduzir o público a tal ou qual raciocínio. A personagem de Fox cai na besteira de, ela, sim, se enamorar daquele homem de quem sabe tão pouco, por mais resistência que tenha oferecido no começo. À medida que o caso dos dois avança, surgem diferenças de temperamento que se agigantam dia após dia e culminam no clímax, que encerra o mote principal da trama. Em meio a episódios de abuso emocional de DeLong para com Grace, casados e dividindo a casa dela, a personagem de Fox fica a par dos tantos golpes perpetrados contra ela pelo marido, responsáveis por sua ruína moral. Sem trabalho, correndo o risco de perder a casa que levara uma vida para adquirir e ferida de morte, Grace tem uma reação desproporcional, que se vira contra ela. A partir desse ponto, aportam no enredo Jasmine, a defensora pública vivida por Bresha Webb, que se encarrega de representar Grace no tribunal. Perry se sai bem ao remeter ao início de “O Limite da Traição”, quando uma mulher ameaça lançar do alto de um telhado e o faz, sem que o policial Jordan, de Matthew Law, possa resgatá-la. Jasmine e Jordan vivem um casamento feliz, ainda que uma outra atribulação se interponha no caminho dos dois. A metáfora desse corpo que cai e deixa a nu as fragilidades das relações humanas é explorada pelo diretor sem abuso, ressaltando a atmosfera de mistério que Perry quis imprimir a seu trabalho, que se revela ainda mais densa com o afinco de Grace em se declarar culpada pelo que fizera com DeLong, apenas para, num instante de explosão, responder a seus insultos. A entrada em cena de Sarah, interpretada por Phylicia Rashad, torna a decifração do enigma ainda mais difícil. Sarah era uma grande entusiasta do namoro da amiga com DeLong, que praticamente a empurrara para a cova do leão, e sua inquilina Alice, performance discreta, mas tocante de Cicely Tyson (1924-2021), serve como uma espécie de entidade, manifestando com seus esgares e grunhidos alguma diferença incontornável com sua senhoria.
Escolhas como fazer de Crystal R. Fox, uma atriz já veterana e pouquíssimo conhecida, a estrela de “O Limite da Traição” — cujo elenco e majoritariamente negro, como seu diretor — leva a história sem dificuldade, e Tyler Perry se aproveita disso, dando a oportunidade de mais gente brilhar. O desfecho, pleno de idas e vindas, mas objetivo, deixa no ar o conflito apresentado no meio do filme, sem lugar para conclusões apressadas. Como se a lição que ficasse é que muito sofre quem muito ama. Só não se magoa quem não vive.
Filme: O Limite da Traição
Direção: Tyler Perry
Ano: 2020
Gênero: Suspense
Nota: 8/10