Um homem diante da morte passa seus últimos dias num planeta condenado a desaparecer. Grandiloquente à primeira vista, “O Céu da Meia-noite”, o épico de ficção científica dirigido por George Clooney em 2020, fala de coisas simples, ordinárias até, mas sem as quais não se pode viver. Clooney se inspirara no livro de mesmo nome da escritora americana Lily Brooks-Dalton, que por seu turno decerto tomara por base “2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968), clássico dos clássicos do gênero, levado à tela por Stanley Kubrick (1928-1999); “Gravidade” (2013), de Alfonso Cuarón; “Interestelar” (2014), de Christopher Nolan; e, voltando à geosfera, mas preservando a aura de aventura de autorrevelação e catarse coletiva, “O Regresso” (2015), de Alejandro González Iñárritu. “O Céu da Meia-noite” parece que vai entrar em parafuso em certos momentos, mas, ajudado pela memória afetiva que o público tem dos filmes que o balizam, o trabalho do diretor-protagonista sai por cima, valendo-se de maneira assumida, sim, dessas referências, mas também tendo o condão de imprimir uma marca autêntica.
O personagem de Clooney, Augustine Lofthouse, é o arquétipo do cientista maluco, mas está anos-luz mais perto da lucidez possível que qualquer outro homem, coisa que se tornou rara na Terra, fustigada por um evento apocalíptico qualquer — não resta claro se se trata de uma peste pandêmica, como que a assolou o planeta entre março de 2020 e dezembro de 2021 (e ainda faz das suas), ou uma Terceira Guerra Mundial, assunto que voltou à baila com todo o gás desde a eclosão dos conflitos russo-ucranianos, em 24 de fevereiro de 2022, evidência macabra de que a humanidade, de uma ou de outra forma, é um caso perdido, e essa é só uma questão de tempo. Por essa razão, Lofthouse resolve permanecer instalado na Estação Meteorológica de Lake Hazan, no Círculo Polar Ártico, mas o roteiro de Clooney e Mark L. Smith insinuam que o herói sucumbe a uma doença terminal, câncer talvez. Enredos de ficções científicas de teor policial, a exemplo de “O Exterminador do Futuro” (1984), dirigido por James Cameron, e Blade Runner 2049 (2017), de Denis Villeneuve, também deixa suas pegadas na história, uma vez que, como vai se notar do meio para a conclusão, “O Céu da Meia-noite” se desenrola num tempo distante, cenário da mais acerba distopia que reflete as atrocidades cometidas hoje.
Lofthouse quer avisar os integrantes do Aether, o ônibus espacial que leva os tripulantes da última missão mandada ao espaço pela NASA, a agência especial americana, que voltem para o planeta em que haviam se radicado, já que a Terra está condenada, mas não consegue, por causa de um problema na conexão. Tem início para o personagem de Clooney uma corrida contra o relógio, a fim de impedir que cruzem a atmosfera terrestre outra vez, ainda mais desesperadora porque a estação fica a muitas milhas de distância, num ponto mais remoto do Ártico. A súbita aparição de Iris, de Caoilinn Springall, a garota autista esquecida quando da desocupação, torna a tarefa ainda mais difícil.
Clooney faz seu filme oscilar entre dois núcleos, dividindo “O Céu da Meia-noite” no tomo que narra a jornada de Lofthouse e Iris ao longo da imensidão de neve do Ártico e o deslocamento da espaçonave guiada por Tom, vivido por David Oyelowo, marido da astronauta Sully Rembshire, a chefe da expedição interpretada por Felicity Jones, que espera uma filha dele. Estão com o casal Maya, de Tiffany Boone, Sanchez, de Demian Bichir, e Mitchell, papel de Kyle Chandler. Furos no roteiro, como o total desconhecimento de Sully e sua equipe quanto às atuais condições de vida na Terra, são contornados com desembaraço pelo diretor, que brinca com o argumento a ponto de sugerir a necessidade de se refundar o gênero humano, com Tom e Sully como o Adão e a Eva intergalácticos. O premiado Martin Ruhe se esmera nas cenas que retratam o espaço, mas só consegue resultados satisfatórios da perspectiva tecnológica; em todas elas, sempre falta um quezinho de drama a mais, malgrado um evento funesto com um dos membros da tripulação dê ao filme o fluxo de sangue de que constantemente necessita. Por outro lado, as sequências rodadas no gelo do Ártico são bem mais quentes, até porque não precisam de tanto investimento em efeitos especiais assim e, destarte, permitem que os atores se entreguem de fato. O roteiro descamba para a controvérsia mais desabrida, mostrando o mesmo Lofthouse, que no princípio se contorcia, vítima de acessos de tosse, rompendo a lâmina de gelo de um lago, mergulhando e passando longos minutos submerso, o que decerto que uma traria uma crise de hipotermia ou um choque anafilático, na melhor das hipóteses. Nada que um intérprete carismático não seja capaz de resolver.
É desse jeito que a história chega ao fim, saudando a estupidez humana por meio de um roteiro inventivo, materializado por atores afinados entre si — especialmente Clooney e a pequena Caoilinn Springall — e a trilha envolvente de Alexandre Desplat, poeticamente agressiva. Excusado dizer que em quem assistiu ao filme no cinema ficam lembranças muito mais vívidas; no entanto, “O Céu da Meia-noite” merece ser apreciado, seja como for. Como diretor, George Clooney é um ator muito bom, mas diante das câmeras ou por trás delas, o coração do público balança por ele. E cinema é isso também, por óbvio.
Filme: O Céu da Meia-noite
Direção: George Clooney
Ano: 2020
Gêneros: Ficção científica/Drama/Suspense
Nota: 8/10