Tocava “Olhos nos olhos”, do Chico Buarque de Holanda.
— Do que foi que você chamou a minha mulher?
— Desculpe, não entendi. Cuspe Sour com gelo e limão. É isso mesmo, senhor?
— Não se faça de sonso, pau-de-arara. Você não pode sair por aí chamando a mulher dos outros de “querida”. Isso não se faz. Quem você pensa que é, rapaz?
— Sou o Erivaldo Mary, senhor. Mas, todo mundo me conhece como Piorra. O senhor pode me chamar de Piorra, se preferir.
— Além de crioulo é piadista, hem?
— Eu sou goiano, senhor. Nasci na Cidade de Goiás, terra da Cora Coralina e…
— Não se faça de besta, moleque.
— Desculpe, meu querido.
— Aí. Tá vendo? Aconteceu de novo. Você não pode sair por aí chamando as pessoas que você nem conhece de “queridas”. É muita petulância. É muito atraso. Quem foi que lhe deu essa liberdade, meu jovem? Chame o maître pra mim. Agora.
— Mas, senhor.
— Chama a droga do maître de uma vez por todas, paraíba safado.
— Eu sou goiano, senhor.
— Não estou lhe perguntando, passa-fome. Chame logo o maître ou lhe jogo esse copo na fuça.
Nem precisava chamar. O chefe dos garçons já tinha ouvido os berros e se aproximava pisando miúdo, tomado por um mau pressentimento. Coisa boa não era, mas, de uma forma ou de outra, o cliente tinha sempre razão, não importasse o que fosse.
— Pois não, meu amigo?
— Ora, ora… Que absurdo! Arrumei um novo amiguinho, então?
— Desculpe, senhor.
— Vocês estão aqui para trabalhar ou para fazer amizade? É o fim da picada. Que droga de restaurante é este onde todo mundo me trata como se fosse da família? Pelo amor de Deus, gente. Coloquem-se nos seus devidos lugares. Esse país não tem jeito. Malditos portugueses. Maldita Princesa Isabel. Só armando o cidadão-de-bem pra consertar tudo isso. Só fechando o STF. Só com golpe militar. Só Jesus na causa. Eu ouvi um amém?
Ninguém respondeu o sujeito, deixando o ambiente com um silêncio ensurdecedor.
— O que aconteceu, senhor?
— Foi esse cabeça-chata aí…
— Ele é de Goiás, senhor. Terra da poetisa Cora Coralina. Suponho que a conheça? A senhorinha era doceira e escrevia muito bem.
— Que se dane a Cobra Coralina. Poesia é coisa de fresco. Não me importa de que planeta esse cabelo-ruim tenha caído.
— O senhor está se exaltando, senhor. Não devia tratar o rapaz desse jeito. Ele já sofre de muitos problemas por causa da baixa autoestima. Vida de pobre é osso.
— Ah, é? Por acaso, eu tenho cara de Irmã Dulce? Quero falar com o gerente. Essa porcaria de restaurante deve possuir um gerente, certo?
— O gerente é o dono do estabelecimento, senhor. Muita gente foi demitida por causa da pandemia, o senhor sabe. Bar é o primeiro tipo de comércio que o governo manda fechar. Não estão nem aí pra gente.
— Não me interessa, velhote. Manda o patrão vir falar comigo. Já.
O homem apareceu ziguezagueando entre as mesas montado numa cadeira-de-rodas, demonstrando destreza, charme e autoconfiança. Fora arrebatado pela paralisia infantil ainda aos três. Naquela época, havia muitas doenças, mas, não tinham vacinas. Hoje, há vacinas, mas, tem muita gente que não acredita em doenças. Um fenômeno difícil de entender, quem dirá, de explicar.
— Boa noite, caríssimo.
— Ah… Agora eu entendo de onde vem toda essa arrogância, toda essa intimidade, todo esse cinismo, toda essa falta de profissionalismo dos seus comandados. O senhor é o folgado mor, um péssimo exemplo de gestor empresarial, um zero a esquerda da gastronomia nacional.
— Não entendi. Será possível que o senhor se controle um pouquinho pra gente conversar com calma? As outras pessoas estão jantando, sabe como é…
— Vá se lascar, aleijado! Levanta dessa cadeira que eu te quebro a cara! Quem você pensa que é para me dar lição de moral? Você não sabe com quem está falando. Não sabe mesmo. Mando fechar essa birosca num estalar de dedos. Não me subestime, rapaz. Não me subestime.
— Se o senhor me explicar o que aconteceu, tenho certeza de que resolveremos isso de uma maneira tranquila e razoável. Vamos reparar todo o mal-entendido, eu posso garantir.
— Muito bem. Vamos lá. Esse carregador-de-bandejas, que se julga um garçom, veio tirar o meu pedido e chamou a minha mulher de “querida”. Depois, veio pra cima de mim também. Quanta insolência. Pode uma coisa assim, meu chapa? É muito folgado esse feioso. É muita petulância para um pobre-diabo que que nasceu feito um calango no meio da caatinga.
— Cerrado, senhor. Foi no cerrado do planalto central. O Piorra nasceu em Goiás. Ele é conterrâneo da poetisa Cora Coralina.
— Que se danem os dois. Que se dane todo mundo aqui. Aposto que são todos eleitores do Homem da Faca. Conheço comunistas de longe.
— O senhor se ofendeu porque o garçom tratou a sua esposa como “querida”, não foi isso mesmo?
Trinta e tantos anos mais jovem do que ele, a mulher era uma criatura linda, uma belezinha mesmo, parecia mais uma deusa esculpida no mármore travertino romano, só que mais torpe e calada. Dava vontade de se deitar para fazer filhos com ela, se é que me entendem. Mas, isso é outro assunto, isso é outra esfera, isso não acrescenta nada de interessante à história.
— Não bastasse esse modorrento chamá-la de “querida”, como se se conhecessem de outros carnavais, ainda me aparece o seu maître, um velhote claramente efeminado e sem pulso com a equipe. Que vergonha.
De fato, o maître era um homem senil, um gay recatado dentro e fora do lar, um profissional experimentado com vasta no atendimento ao público. Mas, isso não vinha ao caso. Só que veio. Paciência. Prossigamos, senão este texto nunca mais vai terminar. Tanta prolixidade já me deu fome.
— Bem que o presidente Mojo Filter falou de vocês. São um bando de despreparados. Alguém precisa fechar lugares como este. Aonde vamos parar? Povo atrasado, burro e de extremo mau gosto. Ainda me mudo deste país. Se os comunistas voltarem ao poder, eu juro que me mudo, podem anotar aí nas suas comandas.
Ninguém anotou patavina alguma. Todos os presentes, funcionários ou não, já estavam de saco cheio com o sujeito. O chope e a paciência estavam esquentando.
— Peço desculpas, senhor. Foi apenas um mal-entendido.
— Estou terrivelmente indignado. Agora não adianta se desculpar, seu manquitola. Só porque está preso numa droga de cadeira-de-rodas, acha que está acima de Deus e de todo mundo? Pensa que vou me condoer só por você não poder caminhar, rapaz? Para cima de moi, não, cabritinho. Aqui você berra. Sangue do cordeiro tem poder.
— Fique calmo, senhor. Vamos reparar isso.
— Servi no Haiti, malandro. Respeita as minhas insígnias e os cabelos brancos.
O cidadão estava vestido à paisana. Ninguém fazia ideia de qual seria a sua profissão. Ninguém estava interessado. Parecia só mais um cliente mal-educado pagando sapo para os serviçais dentro de um bar lotado.
— Tudo bem, senhor. Foi um equívoco. Espero que nos perdoe. Vou providenciar a troca do garçom por outro profissional e serviremos o jantar mais saboroso de sua vida. Não se apoquente. Será uma cortesia da casa, para o senhor e para a sua encantadora esposa.
— Você é mesmo um homenzinho baixo e insolente. Encantadora é a sua mãe. Você merece é bala.
Como quase todo mundo andasse armado naqueles dias nervosos e sombrios, o desalmado sacou o revólver e atirou como se estivesse dentro de um filme de faroeste americano. O projétil atingiu o cadeirante no peito, trespassou pelo estreito espaço entre duas costelas do gradil costal, raspou a trave da aorta, tirou tinta do coração, saiu por uma brecha mole no dorso deixando uma loca onde bem caberia uma mão, ricocheteou na máscara-de-ferro de um cliente russo cuja face tinha sido devorada por um urso em Kiev durante a ocupação da Ucrânia e acabou acertando em cheio na minha testa, no justo instante em que eu estava prestes a terminar este texto. Não se preocupem comigo, a testemunha ocular. Obviamente, eu sobrevivi para contar a história.