A vinda do príncipe encantado, coberto de ouro e rosas, montado num cavalo branco, já foi o sonho de muitas mulheres — e continua a sê-lo para algumas, por motivos não exatamente românticos, mas isso é tema para um outro artigo. No que se refere a “Minha Vida Incomoda Muita Gente”, a mocinha já superou essa fase há muito, até porque ela não é mais tão mocinha assim. Leyla Idrissi pode não ter ficado rica, mas certamente está muito mais safa, muito mais madura, talvez esteja até mais bonita. Contudo, a falta de um marido é, de fato, um problema.
A protagonista do filme da diretora bósnio-holandesa Daria Bukvic, de 2021, vivida por Maryam Hassouni, está naquele ponto da vida em que o relógio começa a girar mais depressa, as oportunidades de trabalho ainda vêm com certa afluência, mas não chovem como antes e, também por isso, o torniquete familiar aperta mais. Farta de tanta humilhação, ela passa por cima de seus princípios e aceita se casar com Abdelkarim, o astro pop marroquino-holandês de Olaf Ait Tami, porque o sujeito precisa de uma mulher à antiga, enquanto se dedica a carreira de músico (de gosto duvidoso, mas milionário), e às eventuais amantes. Resultado: acaba sendo trocada por uma delas. Humilhação ao quadrado.
Parece que Leyla está mesmo destinada a ser a meskina que lhe chamam as tias “favoritas”. Mesmo com o empenho da mãe em lhe arranjar casamento, ela põe tudo a perder fazendo exigências estapafúrdias como amor e fidelidade, e volta para a casa de Najat, personagem de Rachida Iaallala. A aspirante a escritora de livros infantis não consegue ser respeitada e faz justiça ao epíteto que lhe deram as parentas, algo como “coitada”, “patética”, título original do filme. Vítima de gente que fiz amá-la, mas que apenas escarnece dela, muito mais do que pensa, Leyla começa a sair com dois rapazes que conhece num aplicativo de paquera. O que desconcerta, mais ao espectador do que à personagem mesma, é que seu perfil fora montado pela irmã, Amira, de Soundos El Ahmadi, que confere ao longa a descontração que o roteiro de Bukvic, Fadua El Akchaoui e Ernst Gonlag demanda. A onipresença de El Ahmadi, produtora do filme, no entanto, exaure o público, verdadeiramente constrangido em meio a tanta momice.
A partir de então, “Minha Vida Incomoda Muita Gente” vai ladeira abaixo, em todos os sentidos. Amin, o primeiro candidato, é o típico homem de tradições rígidas, e no caso dele, isso não é mera figura de linguagem. O personagem de Nasrdin Dchar marca o primeiro encontro com Leyla no restaurante da família. Pode ser que essa falta de autoconfiança do rapaz tenha sido encarada por ela como mais uma justificativa para levar adiante a relação paralela que mantém com Fabian, de Vincent Banic, e o lugar-comum dos três vértices do triângulo amoroso, que quase desaba e poria a limpo as mentiras de Leyla, também é empregado por Bukvic, que arruma uma saída um tanto delirante para preservar o argumento que serve de, para ser obsequioso, reviravolta à narrativa.
O filme trata da aspiração por independência da mulher no século 21, mas esconde questões importantes que a própria trama expõe. É evidente a agonia de Leyla, presa do velho patriarcalismo que ainda assola sociedades ao redor do mundo, porém é igualmente nítida a maneira pouco diligente com que toca sua vida sentimental — e resta claro que essa história de compromisso não é mesmo com ela. Bukvic deveria ter centrado suas forças no potencial criador da personagem, que se transforma numa produtora cultural bem-sucedida, mas prefere deixar Leyla num eterno banho-maria, sempre dividida entre a importância que sua família dá aos costumes e seus valores individuais, o que tem de fazer com que os outros pensem dela e o que ela é de verdade. O trabalho da diretora fica tão prejudicado quanto a composição de sua anti-heroína, perdido em meio à necessidade de agradar gregos e troianos. Leyla termina a história da mesma forma como começou, sozinha, falseando uma felicidade que seu semblante diz não que vive. Isso tem alguma graça nos contos de fada que nos narram quando somos crianças, com princesas que, justiça se lhes faça, seriam felizes com ou sem príncipe, até por sua índole estoica. No caso da personagem central de “Minha Vida Incomoda Muita Gente” o que parece é que ela queria mesmo o cavaleiro que a levasse à felicidade, mas se contentou com o castelo.
Filme: Minha Vida Incomoda Muita Gente
Direção: Daria Bukvic
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Romance/Drama
Nota: 7/10