A vastidão da Groenlândia torna qualquer problema insignificante. Pelo menos é dessa forma que tentam pensar aqueles que habitam o território, uma área de mais de dois milhões de quilômetros quadrados, plena de paisagens tão lindas quanto melancólicas, e é essa a imagem que Peter Flinth quer que tenhamos dela. O diretor de “Contra o Gelo” (2021) deixa isso claro logo de saída, ao iniciar seu filme com um plano aberto da imensidão de gelo que, inacreditavelmente, esconde não só rochas como criaturas vivas, homens inclusive. O espectador tem de fechar os olhos por um instante, imaginar-se perdido naquele cenário inóspito e deslumbrante e aproveitar a viagem, que dispõe de seus momentos de turbulência e deslizes, na neve e na narrativa. Mas nada que comprometa irremediavelmente a experiência.
Flinth se vale do roteiro de Nikolaj Coster-Waldau e Joe Derrick, adaptado de “Two Against the Ice”, para se estender sobre o que é viver em situações extremas, não abdicar da esperança, mas, ao mesmo tempo, saber lidar com a certeza de que a vida, definitivamente, não poupa ninguém. Em “Two Against the Ice” (“dois contra o gelo”, em tradução literal, sem edição em português), publicado em 1957, o explorador dinamarquês Ejnar Mikkelsen (1880-1971) detalha sua expedição à Groenlândia entre 1909 e 1912, e Coster-Waldau, que encarna Mikkelsen, e Derrick absorvem muito bem o espírito de liberdade dos relatos do autor, frente à luta renhida da coragem contra o medo. Esse autêntico caçador de aventuras conta com a companhia de Iver Iverson, o ajudante meio atrapalhado vivido por Joe Cole, num desempenho cativante, a fim de encontrar os pertences de um homem que conheceu e que, por estar agora muito doente, confia-lhe a missão.
O diretor é hábil em pontuar a beleza plástica de “Contra o Gelo” com as muitas notas históricas do livro de Mikkelsen. No princípio do século 20, os EUA reivindicavam uma faixa de terra que pensavam estar além do território da Dinamarca, separada por um braço de mar batizado pelos americanos de Canal Peary. As autoridades dinamarquesas tomam pé da invasão iminente e o primeiro-ministro Niels Thomasius Neergaard (1854-1936), de Charles Dance, aprova um apêndice ao orçamento, destinado a bancar a missão coordenada por Ludvig Mylius-Erichsen (1872-1907), com o intuito de mapear o terreno e especificar a natureza do solo, sua fauna e a escassa vegetação. A empreitada é um retumbante fracasso e Mylius-Erichsen e seus homens morrem, surpreendidos pelas condições inacreditavelmente adversas do lugar, fustigado por tempestades de neve e ventos incessantes, que tornavam o frio ainda mais intolerável, com a sensação térmica rondando os cinquenta graus negativos. O filme tem início com a jornada de Mikkelsen, a bordo de seu trenó, de volta ao Alabama, o navio que ancorara ao chegar; o personagem de Coster-Waldau teve mais sorte que Mylius-Erichsen e além dos cadáveres, dele e dos outros exploradores, se depara com um mapa que apontaria onde estavam as descobertas feitas pela equipe.
A dupla meio improvável que Mikkelsen forma com Iverson só acontece porque Jorgensen, o homem de confiança do protagonista interpretado por Gísli Örn Garðarsson teve de se submeter à amputação de alguns dedos dos pés por congelamento. Como ninguém mais se candidata ao posto, um suicídio adiado, o mecânico a que Cole dá vida, um tipo sanguíneo, nada afeito à casmurrice do capitão, ganha espaço. A distância de um temperamento para o outro não seria problema se Iversen tivesse alguma tarimba nas pesquisas sobre o Ártico; como seu universo sempre se restringiu às engrenagens das máquinas nos ambientes sufocantes das oficinas, seu novo meio de vida lhe parece um grande brincadeira, malgrado o chefe não lhe dê refresco nos treinamentos com os trenós, o que inclui a útil recomendação de não se apegar aos huskies que os fazem se deslocar pela neve: eles podem virar comida num momento de necessidade extrema.
O relacionamento entre os dois homens ganha destaque sob o pano de fundo histórico, diligentemente construído. Flinth compõe um trabalho harmonioso, em que a direção de fotografia de Torben Forsberg, soberba, levanta os outros elementos do filme, como a trilha meio simplória de Volker Bertelmann. Assumidamente lento, “Contra o Gelo” se embaralha um pouco ao tentar emular as reviravoltas das produções do gênero, mormente numa passagem claramente inspirada em O Regresso (2015), de Alejandro González Iñárritu, como se o diretor, a essa altura dos acontecimentos, se arrependesse da opção por desenrolar seu filme sem pressa e apertasse o flash-forward por tempo maior que o recomendado e, pior, retomasse o ritmo de antes sem a menor cerimônia. O aspecto biográfico da trama é deixado em segundo plano devido à necessidade de cumprir metas e não estourar os prazos, o que não chega a ser uma tragédia, uma vez que a convivência dos dois personagens centrais da azo a passagens realmente divertidas, mais por Joe Cole que por Nikolaj Coster-Waldau, muito bem em Sem Perdão (2017), dirigido por Ric Roman Waugh.
O desfecho, que alude à solução fácil do “e foram felizes para sempre”, com a apresentação de um núcleo romântico meio artificial e sem muita serventia na trama, é indigno do que se vinha mostrando. Não obstante, “Contra o Gelo” vale o investimento, por cumprir seu ciclo com o esmero de Peter Flinth, Joe Cole e Nikolaj Coster-Waldau, nessa ordem.
Filme: Contra o Gelo
Direção: Peter Flinth
Ano: 2021
Gênero: Drama/Aventura/Biografia
Nota: 8/10