A guerra começa. A guerra começa desde sempre. Desde que o homem perde a cauda e passa a se locomover sobre duas pernas. A evolução da espécie não compensa o enredo. A guerra começa desde cedo, antes mesmo de eu nascer, desde que eu nasci, justamente porque nasci e porque deixei de ser um menino. Maturidade é ruína. É a tomada do império de inocência durante invasões bárbaras. Porque a guerra sempre começa, nunca termina, é um loop imperfeito desde que definhou, por inanição, aquela concepção fantasiosa que brincava descalça nas ruas lúdicas da meninice. O mundo era justo. O moleque sonhava. O bem vencia no final. O homem tinha sido concebido pela divindade para ser feliz à imagem e à semelhança de uma parábola. Entenda como quiser. Entre os deuses e os poetas, fico com os últimos. Porque os últimos serão sempre os últimos. Não importa o paradigma: é impossível ser feliz sozinho*. Eu sei o que vocês estão pensando. Plágio de verdade foi ter afirmado que só o amor construía. Há batalhas quentes a destruir o território frio da mente. É inverno na minha dor. Uma guerra interior começa, já faz muito tempo. E não tem bunker seguro, abrigo antiaéreo que me proteja do bombardeio de pensamentos tristes que são despejados por fogo-amigo em ataques diuturnos sobre a minha zona de conforto. A saúde mental está uma zona, um tormento. Vou depositar uma coroa de flores sobre o monumento do soldado anônimo com sonhos desconhecidos. Os pensamentos acelerados vazam pelos ouvidos, infiltram pelos poros e gotejam pelas fissuras microscópicas da espessa fortaleza de alvenaria que se tornou a minha mente. Mentiras. Quem diria que, um dia, acreditaria na alma em desfavor do corpo. Almas não existem. A humanidade não existe. Quem me alimenta de verdade são os bíceps. Removo ideias sem vida sob uma montanha de escombros. A esperança foi implodida. Nem sequer um ombro no qual me escorar. Desde cedo, fui programado para o amor, mas, a maioria dos versos passaram a pobremente rimar com dor. Não espero que ninguém se compadeça do meu abatimento, pois, sei muito bem que a miséria é um estado coletivo, uma fatalidade mútua. A lua continua, companheiros! Brindemos com o vinho e com o sangue dos deuses que nunca nos acudiram, sequer durante os arroubos de alquimia. Quisera não ponderar. Quisera tocar a vida como se fosse um rio incólume a lavar, ad aeternum, as irremovíveis rochas do destino. Todo desapontamento desemboca num mar de dúvidas, por meio de um descomunal fluxo caudaloso de pensamentos que escoam misturados, antagônicos. Quem era icônico virou pária. “Os párias de chuteiras”, parafraseando o cronista obsceno. Aceno das trincheiras de mim mesmo, mas, não apareço com nenhum lenço branco de rendição para o meu socorro. Corro. Guerreio solitário sem os festejos perdulários de quem mata sem remorso um exército inquebrantável de demônios. O que isso significa? Nada. Quase nada. O inferno são os nós. O inferno são os nós que nos atam aos vícios de pensar, de refletir e de sentir melancolia. Meus olhos têm o alcance de um míssil à luz do dia. Mas, o alvo sou eu. Entrincheirado no ocaso, lanço granadas que sempre voltam direto num efeito bumerangue jamais visto, desde que fui visto a dançar e a brincar e a sorrir nos veios frescos da remota infância. Só bato continência se for para o sol, a autoridade máxima ao redor da qual os meus sonhos tronchos-mutilados orbitam. A palavra tem poder. A bala tem poder. O medo da morte e da devastação são aliados com mais poderio do que qualquer rio, do que todo amor reunido. Outra guerra acaba de ser deflagrada. A mídia espontânea e a mídia paga propagam acontecimentos em cenas deploráveis como se não pertencessem a esse mundo. É imundo ficar neutro. Ninguém deserda dos ambiciosos projetos de dominação em prol da felicidade. No exato instante em que escrevo este texto, cidades e pessoas ardem em chamas. Chamo o bichano, alimento-o com leite. Chamo pela minha mão, mas, minha mão não escuta, para o deleite do azar. Há vincos definitivos nas covas profundas, de tom milenar, dos meus olhos flamejantes atacados por rajadas de um merlot. Sinto que não sou. Sinto que não existo. Volta e meia, uma perninha de esperança pisa em falso e se despedaça em frangalhos num terreno minado de ressentimento. Meu coração é uma bomba que pode explodir a qualquer momento. Não serão essas obsoletas paredes de concreto, arquitetadas sob liga de ferro e de cimento, o abrigo secreto a me proteger. Rastejo. Sofro nos espaços subterrâneos e nas entrelinhas das palavras. Nada detém um coração condoído que marcha em compasso de desalinho. Eis o que as guerras entre os homens possuem de mais mesquinho: fincar a bandeira da desesperança no terreno estéril e sanguíneo em que se transformou o coração humano. Um dia, eu fui livre. Porque fui menino. E cri.
*Verso de Tom Jobim