Que atire a primeira pedra aquele que nunca se comoveu com o apelo de um filho, de um neto, de um sobrinho e se deslocou para o cinema mais próximo a fim de saciar a curiosidade do pimpolho quanto ao lançamento do filme de super-heróis da vez (e pior: gostou do que viu e, em alguns momentos, demonstrou o constrangedor entusiasmo que até outro dia era definido como “pagar mico”?). É essa doce nostalgia que “Homem-Aranha: No Aranhaverso” (2018) desperta em quarentões, cinquentões, sessentões e que se suba a escala o quanto for possível. A animação — resistir a escrever “desenho”, como os moleques do meu tempo diziam, é uma tarefa hercúlea — é uma ode à alegria de viver, em que o espectador embarca com gosto e viaja por quase duas horas por uma história que conhecemos de outros carnavais, e que, assim mesmo, consegue nos embasbacar. Ser adulto é estar só, diria Jean Rostand (1894-1977), e se reconhecer completamente indefeso diante da vida, eu acrescentaria. A criança é indefesa, mas não o sabe, logo tudo lhe é facultado. Eis a filosofia por trás do Homem-Aranha.
Sem reinventar a roda e preservando a magia do enredo original, os diretores Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman conseguiram imprimir seu estilo ao longa, ao passo que oxigenaram um tanto a trajetória de Peter Parker quando veste sua malha azul e vermelha. É nítida a opção por rearranjar os elementos que compõem o Aranha de que todos gostamos, de forma a fazer com que gostemos ainda mais dele — até porque não parece razoável rodar outro filme centrado numa figura sobre-humana sem esse personagem traga em seu bojo uma novidade qualquer, seja no conteúdo, seja na forma: além de desperdício de uma dinheirama fabulosa, seria tachar o público de ingênuo, e de ingênuas as crianças de hoje não têm nada. A busca pelo novo é uma meta cada vez mais perseguida pelos estúdios, mormente em produções do gênero, e a Marvel, por óbvio, não fica na janela, justamente por saber até que ponto vai a fidelidade de quem acompanha a saga de seus personagens ao longo dos últimos 80 anos. Desfazer da inteligência de suas plateias — em especial a das crianças, um público sempre ávido por consumir —, não parece o melhor negócio.
O roteiro, assinado por Rothman e Phil Lord — diretor de “Uma Aventura Lego” (2014), com Christopher Miller —, privilegia a interação a mais direta possível com quem assiste, valendo-se para tanto da metalinguagem e do discurso direto, sem a quarta parede, como se o espectador fosse lançado numa arena com os personagens, além do narrador autoconsciente, que pontua a narrativa com seu ponto de vista acerca do que é mostrado. Os personagens de “Homem-Aranha: No Aranhaverso” se sabem fictícios e é exatamente essa a característica que os deixam tão fascinantes.
O filme retrata o cotidiano do subúrbio de Nova York, personificado em Miles Morales, interpretação de Shameik Moore que dosa bem emoção e pragmatismo. Morales é um garoto do Brooklyn que experimenta uma guinada em sua vidinha meio sem graça ao ser picado por uma aranha que lhe transmite uma forte carga de radiação. É por um Brooklyn de ruas movimentadas, táxis amarelos, prédios de arenito e estações de metrô que Morales se desloca, restando clara a intenção do trio de diretores em destacar o realismo de seu filme, cada vez mais dinâmico, sem esquecer da escolha inicial de exaltar a concepção de história em quadrinhos, com direito a balões de diálogo e cores de que a vida como ela é não dispõe.
O Peter Parker de “Homem-Aranha: No Aranhaverso” é o herói ingênuo que a todos encanta, morador do Queens e que teme pelo destino da humanidade ao saber que Morales, um rapaz ambicioso, detém os mesmos poderes que ele. Encarnado pela voz de Jake Johnson, Parker, já um senhor de quarenta e poucos anos, cansado de guerra e com uma barriga pronunciada, encontra-se num dilema dos mais intrincados desde que a vida o obrigara a assumir sua dupla identidade. O texto de Rothman e Lord se concentra nessa figura antinômica a fim de frisar a desilusão das sociedades pós-modernas, com razão inclinadas a duvidar de tudo e de todos — e tanto mais dos que se pretendem protetores do bom, do justo e do belo. É diversão para a criançada e reflexão para a gente grande.
Aqui, o Homem-Aranha adquire identidades que não se espera dele, uma subversão que Persichetti, Ramsey e Rothman bancam sem maiores choques com a porção mais radical dos fãs, que a essa altura já entenderam a linha distópica do filme. O acelerador de partículas construído pelo vilão Wilson Fisk, de Liev Schreiber, promove o caos temporal que se testemunha na grande reviravolta da trama, quando diversos personagens deixam o limbo de outras dimensões e sobem à tona, caso de Gwen Stacy, a Mulher-Aranha a quem Hailee Steinfeld empresta a voz, e o Aranha-Negro, de Nicolas Cage, um detetive durão numa roupa estilizada em preto e branco com o famoso emblema do aracnídeo que fez Parker célebre no meio.
A pletora de tipos os mais plurais a tomar conta de “Homem-Aranha: No Aranhaverso” faz o filme girar em parafuso em alguns momentos, nada que um bom respiro cômico não possa resolver. O risco de que permaneçam para sempre presos num mundo que não lhes pertence gera um pânico acerca do que pode vir ser o futuro. Driblando a linearidade que paralisa a narrativa por algum tempo, o clímax, mais uma explosão das cores que tornam o longa ponto fora da curva das produções que dependem visceralmente da computação gráfica, dá lugar a um desfecho conformista, mas bem encaminhado, o que está longe de ser regra em filmes como este.
Filme: Homem-Aranha: No Aranhaverso
Direção: Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman
Ano: 2018
Gênero: Animação/Ação/Infantil
Nota: 9/10