O filme delirante da Netflix que te manterá imóvel no sofá, olhos grudados na TV e coração saindo pela boca

O filme delirante da Netflix que te manterá imóvel no sofá, olhos grudados na TV e coração saindo pela boca

Distopia nunca sai de moda. De tempos em tempos, a indústria cinematográfica faz questão de desenterrar o assunto e cavoucar um pouco mais, em busca de algum outro fosso de onde tirar mais munição a fim de discorrer sobre ameaças para a perpetuação da humanidade vigentes desde sempre. No caso de “Onde Está Segunda?”, o argumento, a cada dia mais válido, da falência da terra mediante os assaltos incessantes de seus recursos naturais, renováveis e não-renováveis, vem à tona com força no roteiro de Kerry Williamson e Max Botkin, de que o diretor Tommy Wirkola faz o melhor uso que o cinema permite. Multiplicar personagens é um recurso que a tecnologia verteu à perfeição para a tela, e a telenovela brasileira “Mulheres de Areia”, exibida pela Rede Tupi de Televisão entre 26 de março de 1973 e 5 de fevereiro de 1974, e dirigida por Carlos Zara (1930-2002) e Edison Braga, é uma das pioneiras do gênero. Todavia, conforme os avanços da computação gráfica caminhavam, tornou-se possível elevar esse número a potências ainda maiores, cuidando também de cenários, maquiagem e os outros tantos elementos que fazem do cinema o portento que é hoje. E que com toda energia que gasta, toda a água que consome, todo o lixo que produz para fazer um mísero filme, dá sua contribuição para abreviar a vida na Terra…

Wirkola aproveita a mesma ideia de que Alfonso Cuarón já lançará mão em “Filhos da Esperança” (2006) para falar do fim do homem, que esbanjam o que a natureza oferece de graça e pagam um preço alto demais por isso. Desenvolvendo o tom de sátira política igualmente acerbo, “Onde Está Segunda?” assume sua natureza abertamente nonsense (mas nem tanto) e elabora a introdução dos métodos stalinistas, fascistas, nazistas — ou de qualquer outra visão de mundo autoritária, fundada na intromissão direta do Estado na vida íntima de seus cidadãos, sempre visando ao bem comum, por óbvio —, que só permitem às famílias terem um único filho, o que, na prática, se traduz em genocídio. Wirkola dá uma no cravo, outra na ferradura e alerta, cinicamente, que os filhos excedentes serão, sim, descartados, mas temporariamente, só até o momento em que se apresentem conjunturas melhores, com mais chuva numa atmosfera cada vez árida, ou mais terras cultiváveis, num mundo tomado pelo concreto e pelo asfalto, ou seja levada a termo a colonização de algum planeta vizinho, que logo restaria exaurido também. Quando vai se dar o tal momento é a pergunta de um milhão de dólares, a que ninguém é capaz de responder. Enquanto isso, esperam ad aeternum em câmaras criogênicas, administradas por Nicolette Cayman, interpretada por uma Glenn Close em excelente forma, a encarnação da elite política mundial que assevera dias gloriosos a seus comandados enquanto os mata de fome ou de frio. Mao Tsé-tung (1893-1976) deve ter se refestelado no sétimo inferno.

As poucas a terem conseguido escapar da sanha preservacionista de Cayman são as netinhas de Terrence Settman, sétuplas idênticas cuja mãe morre no parto, graças à obstinação — e à criatividade — do avô, que passa a chamá-las atribuindo a cada uma delas um dia da semana. O personagem de Willem Dafoe, sempre muito um passo à frente do que esperam de sua atuação, está consciente de que cometera um crime de lesa-humanidade ao salvar as filhas de sua filha — Wirkola vai nessa toada pelas pouco mais de duas horas do longa, um exercício de boa argumentação filosófica a que o público acompanha empolgado —, mas só consegue se preocupar em como fazer as meninas se manterem vivas e, claro, anônimas, desafio quase inexequível uma vez que as garotas terão de estudar, ir ao médico, logo estarão pensando em namorados, isto é, ter uma vida, por mais limitada que possa ser. Finalmente, chega a uma solução: as sete serão a mesma Karen Settman, que, conforme se assiste a dada altura, passa a integrar o sistema, gerando entre as irmãs e o avô uma aura de desconfiança que Wirkola trabalha bem. O diretor conduz a narrativa adequadamente, se esmerando com denodo nas sequências de ação sem se descuidar de expor com riqueza de detalhes as idiossincrasias psicológicas de cada personagem, dispondo para tanto do talento espantoso de Noomi Rapace, que em meio à esquizofrenia de dar vida a sete tipos, cada qual com sua personalidade, preferências, trejeitos e, assunto importantíssimo no universo feminino, corte de cabelo — embora usem a mesma cor de esmalte, num erro nada desprezível, se o intuito é se seguir por essa linha —, mantém apresenta um desempenho surpreendente a despeito de quem esteja a interpretar. Rapace nunca deixa a peteca cair, nunca se cansa e ainda fornece matéria-prima a fim de que o espectador se identifique com a sua favorita e torça por ela, principalmente se essa personagem for a Segunda do título, que some depois de interpelada pelo aparato de segurança nacional, que começa a desconfiar de que Karen não seja filha unigênita. A esse propósito, o embate entre Rapace e Close, ainda no primeiro segmento do enredo, é uma passagem memorável do cinema contemporâneo, um duelo de titãs digno das melhores produções de Hollywood.

O argumento do mundo distópico é, de fato, o pulo do gato de “Onde Está Segunda?”, valendo-se de recursos estilísticos que facultam ao público vislumbrar no filme a escassez de comida, os lugares tomados de gente, o caos que se avizinha. Para isso, Wirkola lança mão de um grande número de figurantes, de forma que a sensação de abarrotamento chega fácil até o lado de cá. Paulatinamente, vai-se tomando pé da situação das protagonistas, do quão tiveram de negligenciar a própria vida em nome de uma causa maior, o bem coletivo. A persona do avô, o redentor que as faz escapar do gelo eterno, mas as destina a outra natureza de danação, apenas se delineia, quando renderia um mote à parte no roteiro. Entretanto, Wirkola é capaz de conferir à sua história, além dos momentos de reflexão, pílulas de terror bem executado, como na sequência em que Terrence é obrigado a cortar os dedos indicadores esquerdos de cada neta, porque uma só se acidentou. Uma mostra irrisória do tormento que é viver sob o tacão de uma liberdade patologicamente cerceada, fora e dentro de casa.

Este, definitivamente, não é um filme de pura fruição artística, ou mesmo de entretenimento. “Onde Está Segunda?” exige de seu espectador; é preciso alguma bagagem a fim de absorver toda a sua complexa sutileza. Reproduzindo uma conjuntura de tolhimento de liberdades e de direitos, seja lá em nome de que causa pretensamente nobre, Tommy Wirkola, sem fazer alarde, alerta para os perigos do politicamente correto, inclusive na sua versão ambiental (e igualmente totalitária). Não se alcança o progresso eliminando o livre pensamento — até porque foi por causa dele que, aos trancos e barrancos, evoluímos até aqui.


Filme: Onde Está Segunda?
Direção: Tommy Wirkola
Ano: 2017
Gênero: Ficção científica/Ação
Nota: 9/10