Novo filme de ação policial da Netflix vai manipular suas emoções

Novo filme de ação policial da Netflix vai manipular suas emoções

As trapalhadas da polícia vêm sendo matéria-prima para o cinema desde sempre, sob as mais diversas abordagens, em culturas as mais distintas. Talvez o detetive Thomas Blin tenha sido um Frank Serpico algum dia, que cansado de lutar contra um sistema vilipendiado pela corrupção, decide se juntar à banda podre antes que acabe como o personagem de Al Pacino no filme de Sidney Lumet (1924-2011). As trajetórias marcadas por condutas opostas do protagonista de “Serpico” (1973) e o de “Um Dia Difícil” se equiparam ao definirem as complexas particularidades de uma carreira ainda mais cheia de altos e baixos, em que uma decisão errada num momento de tensão extrema implica mudanças severas — e quiçá irreversíveis — na vida de muita gente, de boa índole ou criminosos experimentados. Sempre é possível se fazer a coisa certa, de acordo com o que se assiste no longa de Lumet, cujo roteiro de Waldo Salt (1914-1987) e Norman Wexler (1926-1999) é inspirado no livro homônimo de Peter Maas (1929-2001), malgrado as consequências sejam uma perseguição implacável justamente ao homem probo, muito longe de uma diáfana santidade, mas que se torna um mártir só por querer cumprir sua obrigação profissional sem desvios de nenhuma ordem. Ossos do ofício.

O tema é tão vasto que não raro se repete na centenária jornada do cinema. “Um Dia Difícil” já fora levado às telas, em 2014, pelo diretor sul-coreano Kim Seong-hun, e a, vá lá, releitura do francês Régis Blondeau reapresenta tudo o que o colega já mostrara oito anos antes, introduzindo as adaptações temporais necessárias, por óbvio. Neste como no outro, um policial, no caso o investigador vivido por Franck Gastambide, se vê presa de uma armadilha que ele mesmo se preparara. A caminho do funeral da mãe, Blin atropela um homem e, claro, pensa, como qualquer um, que as lesões do acidente é que foram a causa dessa outra morte. Ao que parece, princípios éticos e leis não se constituem uma grande dificuldade para ele — que, como deixa claro este roteiro, de Blondeau e Julien Colombani, tem muita experiência em transportar cadáveres de um lugar para outro —, que na sequência se desloca, a contragosto, para onde o corpo da mãe está sendo velado.

Esse arco, potencialmente tão rico se fosse bem trabalhado, passa ao largo da curiosidade de Blondeau e o espectador é obrigado a se contorcer de curiosidade ao tentar adivinhar que grande mágoa seria essa a do policial por sua mãe, cujo velório reúne uns poucos gatos-pingados, aí incluída a irmã de Blin, sua filha pequena e a equipe do cerimonial. Contando com a licença poética (e a boa vontade da audiência), entre sua chegada e o momento da saída do corpo, o personagem de Gastambide fora capaz de pensar numa maneira, por sinal muito engenhosa, de se livrar do outro cadáver, o do homem que crê ter matado e que permanece no porta-malas de sua BMW cinza. Esse, sem dúvida, é o ponto do filme, com o que muita gente considera como passagens bem-humoradas, ainda que o humor seja negro, nigérrimo; melhor mesmo é se concentrar no malabarismo que Blin tem de empreender a fim de dar o destino que julga perfeito ao morto que, como se vai ver na reviravolta, requentada do primeiro filme, não se revela uma ideia assim tão genial, principalmente devido a um erro primário do detetive-bandido.

Rir do infortúnio de Blin faz parte do pacote num filme como “Um Dia Difícil”, até engenhoso em manipular as emoções do público, que fica entre perdido, achando ter desvendado as intenções torpes de Blin e seus planos para engambelar seus superiores (entre os quais seu chefe imediato, Marc, do ótimo Michaël Abiteboul, que termina mal ao tentar advertir o subalterno para que tome jeito); revoltado, por ver que, brasileiramente, sempre arruma um jeitinho de alongar seu tempo na corporação; e conformado, quiçá até dominado pela sensação de que é deveras inútil torcer para que seja pego, e, destarte, se alia ao malandro, que mesmo acossado pelo comissário Antoine Marelli, outro tira implicado em atividades infralegais, com quem topa sem querer — boa performance de Simon Abkarian já no caminho do desfecho —, consegue dar a volta por cima. O embate entre os dois, briga de cachorro grande (apesar de um dos cães sempre apresentar os dentes mais afiados que o outro), merece a atenção que o todo dispensa.

Por mais críticas que se possa fazer ao filme, há que se reconhecer o talento de Régis Blondeau em imprimir a seu trabalho a natureza do absurdo, um recorte da própria vida do protagonista. A história oscila entre o ridículo e o truculento, este exercendo hegemonia sobre o primeiro, que também sabe se impor na hora exata. O equilíbrio dessas duas metades — irregulares, mas interdependentes — é o que faz “Um Dia Difícil” não restar mero pastiche do antecessor, uma vez que exalta o cinismo nosso de cada dia sem medo de patrulhamento desse ou daquele jaez. Não é o bastante.


Filme: Um Dia Difícil
Direção: Régis Blondeau
Ano: 2022
Gênero: Policial/Ação/Suspense
Nota: 6/10