Com 100% de avaliações positivas, suspense, de 2021, que passou despercebido, é um dos melhores filmes da Netflix Bartosz Mrozowski / Netflix

Com 100% de avaliações positivas, suspense, de 2021, que passou despercebido, é um dos melhores filmes da Netflix

Por alguma razão, na Polônia de meados dos anos 1980 se pensava que homens homossexuais constituíssem uma grande ameaça à segurança nacional. Essa foi uma tentativa a fim de explicar a Operação Jacinto, orquestrada para perseguir gays em bares e banheiros públicos, tivessem ou não passagem pela polícia. Uma vez capturados, esses indivíduos eram catalogados num banco de dados que chegou a contar com as informações pessoais de mais de onze mil cidadãos, a maior parte pais de família que não poderiam admitir em que circunstâncias haviam sido apanhados. De tal violência resultavam confissões forçadas de crimes que não tinham cometido, demissões, chantagem e outras modalidades de violência, que não raro culminavam em suicídios que só as autoridades policiais poderiam explicar. Isto é, pairava em toda a Polônia uma bruma densa de pânico, recrudescendo sem respeitar limites socioeconômicos, alimentada por um flagrante desprezo aos direitos humanos, ao devido processo legal, às liberdades de opinião e de imprensa e aos procedimentos mesmos que a polícia fazia uso quando tinha de prender alguém.

Tomar pé desse cenário ajuda o espectador a não se perder, mas mesmo que não se saiba nada a respeito de “Entre Frestas”, ninguém fica completamente à deriva. O filme do diretor polonês Piotr Domalewski, lançado em 2021 a partir do roteiro de Marcin Ciastoń, toma a operação como premissa para esclarecer o caso verídico de um assassino em série de homossexuais, investigado por um policial empenhado, que acaba fazendo muito mais do que os seus superiores esperavam dele. A óbvia referência a “Cruising” (1981), de William Friedkin, malgrado esta seja uma história real, se dilui bastante à medida que “Entre Frestas” se assume um autêntico thriller de detetive, que amalgama muito do noir de Orson Welles (1915-1985) à paranoia de Hitchcock. E “autêntico” é a palavra certa para definir o trabalho de Domalewski, dono de uma carreira diligentemente construída, primeiro com curtas a exemplo de “60 Kilos of Nothing” (2017), vencedor do Festival Internacional de Cinema de Trieste, um dos mais badalados do circuito alternativo da Europa.

Nada como um filme que consegue alinhar plot, roteiro, direção e elenco numa única reta positiva. Tomasz Ziętek surpreende como Robert, o oficial ambicioso em busca de um caso capaz de fazer sua carreira decolar. Apesar da influência do pai, Edward, vivido por Marek Kalita, o personagem de Ziętek fora talhado para a carreira, e até se apaixona por uma moça com essa mesma paixão pelo trabalho, Halinka, interpretada por Adrianna Chlebicka, que não estranha os rompantes de insegurança do noivo. Incorporado à Operação Jacinto, Robert logo se dá conta de que é o único entre os colegas a manifestar algum apreço pelos homens que interpela nas bibocas escuras e sujas de Varsóvia, e começa a ser discretamente hostilizado por isso. A alternativa um tanto por que opta a fim de se livrar do assédio dos companheiros e ao mesmo mostrar serviço e conquistar a confiança de seus chefes é se passar por um dos frequentadores desse submundo de inferninhos e festas privês, ou seja, imiscuir-se entre esse público e convencê-lo de que é um deles.

Robert toca seu plano sem maiores dificuldades. Contudo, quando parece de fato perto de uma pista relevante, a cúpula da polícia exige que as investigações sejam encerradas o mais breve possível e nesse meio-tempo, o suspeito pelas mortes, detido por ele, aparece morto na cela, depois de ter prestado uma confissão à custa de tortura. A polícia encerra o caso, e enquanto aguarda pela promoção que lhe haviam prometido — agilizada por Edward — Robert demonstra certa vacilação sobre umas tantas questões de sua vida, inclusive o casamento com Halinka. A maneira como Domalewski conduz essa subtrama leva a uma resolução precisa, que começa a derrubar alguns véus de “Entre Frestas”. A apuração acaba indo em frente, e pouco depois, o investigador conhece Arek; o personagem de Hubert Milkowski, com quem Ziętek compõe uma boa dupla, é a antítese de Robert: tudo o que este possa ter de reprimido, de ressentido, de abafado, Arek tem de autoconfiança, autorrespeito e ousadia. Gato escaldado, o novo amigo de Robert desenvolveu técnicas sofisticadas para fugir da polícia e identificar possíveis agressores, por mais que se disfarcem — e fica no ar o porquê de Arek não ter suspeitado de Robert, se é que não suspeitou mesmo. Esse seria o primeiro gatilho a se voltar para a homossexualidade recalcada do protagonista, que vai deixando de ser segredo (para si mesmo, inclusive), vácuo que Arek logo trata de preencher, do modo mais atirado, o que acorda em Robert necessidades incontroláveis.

A partir desse ponto, “Entre Frestas” passa a se alongar com mais tardança sobre a intimidade de seu confuso personagem central, abordando a inadequação de seu novo estado à vida que levava até aquele momento, o que torna a narrativa, já crispada por causa da sequência de crimes, ainda mais nebulosa. Ao descobrir o que se passa, afinal, com o filho, Edward, por evidente, não se conforma e o embate entre seu personagem e o de Ziętek é um exemplo de como apresentar um conflito intrincado de maneira contundente sem se perder a sensatez e o decoro. Em meio ao turbilhão que se abate sobre sua vida, Robert se bate com homens poderosos e seis segredos, o que incrementa a natureza obsessiva do personagem, contrabalançada por um Arek que passa a oferecer risco, tanto para o amigo como para si mesmo, graças a seu espírito indomável.

“Entre Frestas” — originalmente intitulado “Operação Jacinto”, em alusão à flor pela qual os homossexuais passaram a ser denominados na Polônia —, condensa o mistério do noir ao trágico do amor impossível, ao passo que ainda se presta à categoria de filme de protesto, fazendo denúncias inéditas sobre a conduta de certos agentes e da polícia mesma no que respeita ao evento que esquadrinha. Longe de propor soluções, definitivas ou ainda provisórias, para a homofobia ou a intolerância policial a certos grupos, o filme de Piotr Domalewski alcança a intenção a que se propõe, qual seja, unir numa única história interesse social, rigor metodológico e ótimo cinema. 


Filme: Entre Frestas
Direção: Piotr Domalewski
Ano: 2021
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 10/10