Robinson Crusoe e Primo Levi revelam os horrores do mundo

Robinson Crusoe e Primo Levi revelam os horrores do mundo

É possível fazer uma aproximação entre o romance “Robinson Crusoe” (1719), de Daniel Defoe, e o livro de memórias “É Isto um Homem?” (1947), de Primo Levi. Pois nada mais parecido com a vida num campo de concentração da Alemanha nazista do que o inferno de uma colônia europeia, a partir do século 16. Sem obstáculos ou punições, um ser humano poderia ser morto, vendido, escravizado ou surrado nas regiões do Novo Mundo colonizadas por ingleses, franceses, holandeses, espanhóis e portugueses.

Era para as Américas, África e Ásia que europeus mandavam sua população indesejada (os miseráveis). Nessas terras, a ralé europeia se juntava aos escravos de origem africana. Com isso, a colônia tinha a característica de ser um quarto de despejo, um depósito de gente, e uma zona livre de produção da Europa. Esse modelo se repetiu, de certa forma, na Segunda Guerra, quando os alemães instalaram os campos de trabalho e de extermínio para matar os indesejados. Aos nazistas, foi essencial a experiência colonial.

O escritor martinicano Aimé Césaire analisou bem a proximidade entre a forma de vida nas colônias e a dos campos nazistas. Para ele, o que o cidadão europeu “não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, e a humilhação do homem branco e o fato de ter aplicado à Europa processos colonialistas que, até ao momento, apenas diziam respeito aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros de África”.

Na mesma época de Césaire, a filósofa Hannah Arendt corroborou a afirmação e disse que os nazistas copiaram as práticas usadas nas colônias. A surpresa, portanto, estava na aplicação da mais brutal violência dentro da Europa — e não mais em territórios distantes que tinham pessoas “estranhas”. É dessa perspectiva que podem ser lidas obras centrais como “Robinson Crusoe” e “É Isto um Homem?”. Para além da escrita extraordinária, elas expõem os mecanismos internos do mundo contemporâneo.

Escravidão colonial

Crusoe é um dos “mitos do individualismo moderno”, de acordo com o estudo clássico de Ian Watt. Os outros são Fausto, Dom Quixote e Dom Juan. No caso do personagem do Defoe, trata-se da conhecida história do náufrago que vai parar numa ilha, onde encontra um morador nativo que ele batiza com o nome de Sexta-Feira. Sua figura é o modelo do self made-man, ainda na fase de empreendedor do capitalismo colonial. Porém, as leituras do romance dão pouco importância à situação precedente de Crusoe.

Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoe

O naufrágio ocorre no retorno de Crusoe de uma viagem à África. O personagem foi ao continente africano buscar escravos negros para sua fazenda na Bahia, região da colônia portuguesa chamada Brasil. O que passa batido para os leitores é justamente o fato de Crusoe ser um fazendeiro, um explorador em terras brasileiras. Defoe constrói assim uma representação muito precisa do capitalista na grande “economia-mundo”, operada pelo colonialismo europeu. A civilização forjada por meio da barbárie.

Coube à crítica brasileira Sandra Guardini destacar o tráfico negreiro no “mito” de Defoe. “A decisão de Crusoe de embarcar nos navios com destino à costa de África, suas provações e tribulações por lá, e suas atividades no Brasil está inextricavelmente enredada com a escravidão e com o comércio de escravos, que, apesar de seu papel fundamental nas aventuras do protagonista no Atlântico, foram em geral negligenciadas como pontos de partida do romance”, diz ela, no prefácio à nova edição do romance pela Ubu Editora.

Guardini acrescenta a informação de que Defoe era acionista de duas companhias inglesas voltadas para comércio de escravos. Ele não era apenas um ficcionista, mas sim um investidor do negócio colonial: “O próprio Defoe estava ciente de que o comércio de escravos era decisivo para a construção da Grã-Bretanha como potência mundial. Como ele escreveu a certa altura, ´o caso é tão claro quanto a causa e consequência. […] Sem comércio africano, sem negros; sem negros, sem açúcares, gengibres, índigos etc.; sem açúcares etc. sem ilhas; sem ilhas, sem continente; sem comércio”.

Campos de concentração

Não haveria nazismo sem o colonialismo. A ralé dos tempos de Crusoe vai reaparecer na figura dos guardas dos campos de concentração. Segundo Robert Antelme, em seu livro clássico “A Espécie Humana”, os vigias do lager (o campo nazista) eram recrutados entre “assassinos, ladrões, escroques, sádicos e traficantes do mercado negro” — dando a noção do inferno que era um campo. Apenas pessoas sem o menor escrúpulo, já marginalizadas, poderiam suportar o modelo nazista de “gestão” de seres humanos.

“Sob eles [os vigias do campo] não podia reinar senão a lei SS [a organização policial do nazismo], nua e crua. Para viver, e mesmo bem viver, não lhes restava outra escolha senão tornar ainda mais violenta a lei SS. Nesse sentido, desempenharam o papel de provocadores. Provocaram e mantiveram entre nós [os prisioneiros], com crueldade e lógica assombrosas, o estado de anarquia que lhes era necessário”, conta Antelme, que foi casado com a escritora Maguerite Duras.

O grande relato sobre o “campo” foi dado pelo italiano Primo Levi, cujo centenário de nascimento é celebrado em 2022.  Sobreviver ao campo nazista abalou de vez quem passou pela experiência-limite. No desmonte de Auschwitz, o mais conhecido centro de extermínio de judeus, os soldados alemães fizeram Levi desenterrar corpos e queimá-los. Ainda disseram em tom de satisfação: ninguém vai acreditar em você, caso venha a contar o que aconteceu aqui; pois então “desista”.

Levi, a princípio, não desistiu e escreveu suas memórias “É Isto um Homem?” (1947). Depois veio o livro “A Trégua” (1963), que relata sua volta para casa na Itália. Na longa caminhada, tal qual um Ulisses destroçado, ele encontrou um menino perdido de uns três anos e que não falava uma língua sequer. Foi batizado de “Hurbinek” (o único som inteligível que emitia). Segundo Levi, a criança era a maior testemunha do que houve, mas jamais contaria sua história porque morreu dias após desse encontro.

O escritor italiano notou que alguns prisioneiros morriam ainda em vida no campo de concentração. Eram os “musselmans”, porque ficavam encolhidos na posição de oração dos muçulmanos e haviam perdido a vontade de viver. Tal qual um africano escravizado numa colônia, a vida do prisioneiro judeu era curta, e os dias estavam contados. Era também insuportável sobreviver. Primo Levi deixou uma obra riquíssima da situação-limite do século 20, também não suportou o fardo de existir e suicidou-se em 1987.

Necropolítica

Escravos negros e prisioneiros dos campos nazistas representaram assim uma mesma figura: o ser humano descartável que pode ser simplesmente eliminado, a qualquer momento. Quais seriam seus descendentes no século 21? Possivelmente, os refugiados que saem de regiões distantes do planeta (as margens ou periferias do capitalismo) e entram desesperadamente nos países ricos da Europa. Podem ficar vagando como mortos-vivos pelas cidades ou viver em campos de refugiados, como o da Ilha de Lesbos.

A ficção já retratou o horror de quem buscou refúgio nos últimos dez anos. São pessoas que se afogam na travessia em barcos precários no mar, como se vê no filme “Atlantique” (2019), de Mati Diop, disponível na Netflix. Ou indivíduos que vivem acampados nas praças das grandes metrópoles europeias, conforme mostrado no romance “Go, Went, Gone” (2017), da escritora alemã Jenny Erpenbeck. É uma situação extrema como aquela vivida por escravos africanos e prisioneiros da Segunda Guerra.

A prática de se escolher populações elimináveis é o que o filósofo camaronês Achille Mbembe vem chamando de “necropolítica”. Trata-se da gestão de vida humana baseada na ideia de eliminação ou extermínio. Uma política voltada para a morte dos sujeitos considerados supérfluos. Aqueles que não servem para a máquina global do capitalismo atual. No Brasil, eles podem ser indígenas, moradores de favelas ou quilombolas, que se tornaram um estorvo para a racionalidade econômica.