Engraçado e macabro, filme de zumbi na Netflix é um dos mais encantadores e adoráveis da história do cinema

Engraçado e macabro, filme de zumbi na Netflix é um dos mais encantadores e adoráveis da história do cinema

É bom ver alguma coisa nova de vez em quando. O terror é, disparado, o gênero de filmes em que mais chavões pululam com maior insolência, e refinando-se o corte, conclui-se sem margem para grandes contestações, que as narrativas que se debruçam sobre zumbis, os tais mortos-vivos (ou mortos-que-andam), são as que mais apresentam as chagas do copia-e-cola, muito em função da praga criminosa das franquias. É necessária uma paciência de exorcista para encontrar alguma coisa que se destaque no oceano de mesmice e besteirol de que essas produções são pescadas, permitindo-se contagiar pelo entusiasmo adolescente da licença poética. Coincidentemente ou não, os dois melhores filmes de zumbi de todos os tempos foram lançados há menos de uma década. Avalie o tamanho do prejuízo.

Definitivamente, não sou um fã desses filmes e, confesso, faço questão, como todo adulto que se preze, de nutrir meus preconceitos, sempre fundamentados ou na minha experiência pessoal ou na minha intuição (quase) infalível — para não mencionar a preguiça algo intransponível e a culpa por sentir que estou perdendo meu pouco tempo lançando pérolas aos porcos. Como havia dito, me surpreendi com “Warm Bodies”; o filme de Jonathan Levine, de 2013, talvez tenha me deixado ainda mais perplexo do que Invasão Zumbi (2016), dirigido pelo sul-coreano Yeon Sang-ho. Para lançar mão de uma metáfora bastante apropriada ao tema, se fosse para escolher um dos dois a quem oferecer meu coração duro numa bandeja de prata, ficaria com o mais antigo, pelo critério da excelência artístico-técnica, nada a ver com respeito a hierarquia ou qualquer outro argumento que o valha. Por tê-lo feito tão amolengado, “Warm Bodies” o merece.

Levine mostra os zumbis — ou “cadáveres”, como ele prefere — do jeito que eles são (ou seriam): criaturas que andam curvadas, rosnam, apuram o faro à procura de carne humana e que, ao conseguirem o que querem e matarem sua fome atávica e diabólica, passam a ser perseguidos por um batalhão de justiceiros ou por forças de segurança devidamente patrocinadas pelas autoridades. Esse vem a ser o ponto de decantação de “Warm Bodies” em comparação aos demais enredos protagonizados por esses pobres monstros. No roteiro do diretor, nenhuma bala de prata espera o peito de R, a bête noire vivida pelo então galã juvenil Nicholas Hoult, a principal vítima do pânico que sua figura macabra inspira. Hoult, vencedor na categoria Revelação em um Filme do Teen Choice Award, premiação voltada ao público adolescente, se cacifou como intérprete com o longa e poderia muito bem estrelar as megaproduções do terror-cabeça de John Carpenter, como “Eles Vivem” (1988) ou “Alguém Me Vigia” (1978). Seu carisma de bom menino, bonito mesmo depois de zumbificado, uma decisão estética arriscada que se mostra bem-sucedida — não se esqueça da salvífica licença poética —, arrebata o espectador (e, principalmente, a espectadora), mas é mesmo seu jeito espantosamente ingênuo, tanto mais chocante num indivíduo como ele, que demole a resistência de qualquer um. Além de ter a capacidade motora comprometida — mas só até a página dois, conforme se assiste ao longo da história —, sua prosódia arrastada e sua memória deficiente não nos permitem saber ao certo o que devem esperar os humanos que têm conseguido se livrar da sanha predatória dos zumbis. É precisamente essa uma de suas características que mais empatia desperta na audiência; no encontro com Julie, a personagem de Teresa Palmer, um dos pontos altos do filme, se passa a saber algumas coisas sobre R, menos seu nome: o zumbi-gato só é capaz de pronunciar a primeira letra, e as cenas que se seguem são um respiro cômico-romântico que cai muito bem. Ainda há ali resquícios de um homem querendo vir para fora, apesar de ser obrigado a viver confinado num avião sucateado depois do ataque dos mortos-vivos, passagem em que o diretor   começa a explorar a natureza pós-apocalíptica da trama. Nesse universo paralelo, dividido entre zumbis, humanos e os esqueléticos — muito mais horrendos por já terem abdicado de toda a esperança e abraçado com o discernimento possível a autoimolação, deixando à mostra os ossos com que massacram tanto humanos como zumbis —, consegue estabelecer uma amizade com M, de Rob Corddry, performance à altura do ótimo desempenho de Hoult, que igualmente parece conservar sua porção de humanidade.

Tomando por base o conto de Isaac Marion, posteriormente desenvolvido e tornado romance, Levine dá à versão cinematográfica da história a mesma consistência, valendo-se de expediente igual, partir do todo para o específico, permitindo assim que tipos como o general Grigio, de John Malkovich, ou Nora, a confidente bem-humorada de Julie interpretada por Analeigh Tipton, tenham sua vez. No que toca a Malkovich, seu personagem é contido na medida, fazendo prevalecer o caráter de pai zeloso da mocinha, dominado por um ódio insano ao saber que a filha anda se engraçando com R. O desdobramento desse arco dramático, meio seco, se encaminha, como se pode presumir, para a pacificação entre os três, mas só depois que Grigio entende que mais que inofensivo, esse mocinho nada usual tem o condão de reverter a praga que começava a se alastrar por todo o planeta, fazendo uso de um grande poder.

Ao assumir a intenção de distorcer o que se convencionou denominar terror, Jonathan Levine faz de seu filme uma lufada de ar fresco na câmara embolorada que encerra certos realizadores, tornando a atmosfera um tanto sufocante e, quiçá, servindo-lhes de inspiração, a exemplo do lampejo da genialidade shakespeariana que decerto o iluminara. Claro que esse “Romeu e Julieta” está muito mais para “Sonho de uma Noite de Verão”, pelo absurdo da narrativa, pelos lances cômicos, pelo final feliz — ou, ao menos, tão feliz quanto a vida pode ser. “Warm Bodies” é um romance de terror (ou um terror romântico) pleno de ritmo, de poesia, de beleza, e o melhor, de criatividade e de ousadia num meio que costuma ficar congelado por séculos a fio. Quem diria que eu fosse chorar num filme de zumbi…


Filme: Warm Bodies  
Direção: Jonathan Levine
Ano: 2013
Gênero: Terror/Romance
Nota: 9/10