Viver nunca foi exatamente fácil. Poucos conseguem preservar a sanidade mental frente a tanta preocupação, tanta ansiedade, tanto conflito. Nos últimos 70 anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o homem tenta escapar das armadilhas da modernidade; nos tornamos viciados no conforto tóxico dos grandes centros, estamos cada vez mais assoberbados de trabalho e a consequência direta de toda essa deturpação do que deveria nos trazer mais qualidade de vida — e acaba por nos deixar sedentários, gordos, diabéticos, hipertensos — é o fastio, a decepção, a tristeza, passos firmes rumo à infelicidade. Dia após dia, cada de um de nós — do multimilionário cuja fortuna se erigiu da mão para a boca ao pobre-diabo que luta por um pecado de pão sob o viaduto de uma megalópole qualquer — temos nossas batalhas a travar. São muitos os desafios para os teimosos que insistem em viver, em seguir adiante, tropeçando, errando, mas determinados a burlar o pensamento enganoso que reza que a vitória tem um momento exato para chegar. A esmagadora maioria das pessoas nunca está apta a experimentar o sucesso se não à custa de uns tantos fracassos, que se acumulam, como degraus que conduzem a uma nova dimensão e a um mundo muito mais interessante.
Para tanto, há que se estar disposto e ser sensível aos acenos da vida. Às vezes, é mais recorrente que o aconselhável a vontade de se isolar, ou de passar por cima de preceitos éticos — tomados como meras formalidades ou um pormenor dispensável de gente meio melindrosa —, ou ainda de ignorar esses mesmos sinais e fazer tudo de um jeito completamente novo (e errado), tentações que nos impedem ou, ao menos, nos atrapalham de seguir caminhando. Uma das grandes sabedorias da vida é aprender, o mais breve possível, a respeitar o lugar onde chegamos e a maneira que escolhemos para isso. Se tudo está nas nossas mãos — e está mesmo —, o mais razoável, o mais inteligente a se fazer é, para princípio de conversa, valorizar nosso esforço, não abrir mão do que nossas experiências nos legaram. Respeitar-se, a si e a sua própria história, faz toda a diferença para se vislumbrar, afinal, a beleza do existir; quando, por algum motivo, isso não acontece, o que se vê é a pletora de desencontros e vexames que atropela Daniel Mantovani, o protagonista de “O Cidadão Ilustre” (2016), comédia dramática dos diretores argentinos Gastón Duprat e Mariano Cohn. Contudo, também sempre se pode dispor do onipresente livre arbítrio a fim de se evitar qualquer risco de desapontamento, e a pandemia de covid-19 deixou à humanidade uma lição: se isolar pode ser libertador, e no documentário “Bo Burnham: Inside” (2021) o comediante americano Bo Burnham faz dessa pretensa agonia o gatilho para experimentar novos métodos, aprimorar técnicas que já conhecia e repensar sua trajetória pessoal e seu trabalho. A lista da Bula toma esse propósito, o de tratar das pirações que o cinema oferece, nessa ou naquela medida, para, invariavelmente, tentar fazer com que o distinto público seja um pouco menos melancólico e um tanto menos estúpido. O Cidadão Ilustre, “Bo Burnham: Inside” e outras três produções, todas disponíveis no acervo da Netflix e lançadas entre 2021 e 2000, partem do pressuposto de que estamos sempre precisando de orientação, mas se não for o seu caso, melhor ainda. Dá para apreciá-lo apenas sob a perspectiva do entretenimento.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Se existe alguém que aproveitou o confinamento obrigatório por causa da pandemia de covid-19, desde março de 2020, essa pessoa chama-se Bo Burnham. O comediante se valeu justo da falta de interação com o público a fim de desenvolver novas técnicas e novos propósitos para a carreira. Em cartaz desde maio na Netflix, a comédia musical com DNA de documentário tem sido aclamada por crítica e espectadores graças à originalidade. Artista multitalentoso, Burnham dirigiu “Oitava Série” (2018) e está no elenco de apoio de “Bela Vingança” (2020), vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original de 2021.
Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.
Depois de um discurso o seu tanto ácido na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, um bem-sucedido escritor que saíra de Salas, na Argentina, onde nascera e vivera até os 20 anos e fora viver em Barcelona, na Espanha, começa a sentir os efeitos autodestrutivos de sua sinceridade indomável. Os compromissos mais importantes são cancelados, sobra um ou outro simpósio ou palestra menos insignificante, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Por mais que tenha vivido os últimos quarenta anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não, Mantovani embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio, que deveria aceitar as determinações da vida e não remexer o que deveria estar encerrado para sempre. Teria ele um propósito maior por trás de uma empreitada tão perigosa? Essa é uma das perguntas que se impõem ao fim de “O Cidadão Ilustre”, um dos melhores filmes da última década.
Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados – ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.
Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações e se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.