Não Me Mate, novo filme da Netflix, não vale seu tempo

Não Me Mate, novo filme da Netflix, não vale seu tempo

“Crepúsculo”, sem dúvida, deu o que falar. Sem entrar no mérito sobre se a saga — palavra gasta — do casalzinho bonito vivido pelo vampiro Edward, de Robert Pattinson, e a mortal Bella, de Kristen Stewart (com direito ainda ao lobisomem meio perdido entre a vilania e a vontade de sair de cena e deixar o campo livre para o amor dos estranhos pombinhos, interpretado por Taylor Lautner) tem algum valor estético ou, vá lá, artístico, a verdade é que desde a franquia adaptada dos livros de Stephenie Meyer vem se observando um certo revigoramento desse subgênero do terror, com todos os seus clichês tão típicos: adultos jovens, endinheirados e absolutamente sem rumo.

Andrea De Sica é um dos responsáveis pelo fenômeno. O diretor italiano, neto de Vittorio De Sica (1901-1974), mostra em “Não me Mate” (2021) um esforço bem-sucedido em oxigenar a narrativa de criaturas que já cruzaram a linha da humanidade, mas permanecem por aqui, sem prestar tributo algum à morte. Os Mortos-Vivos, como são conhecidos — nenhuma novidade, como todo mundo decerto sabe —, passam a frequentar festinhas suspeitas à procura de, claro, carne humana, fresca, a ser consumida obedecendo-se a um determinado ritual, a fim de não matar a vítima e, assim, inutilizar o repasto. Também se presume que, a certa altura da história, se comece a explorar a figura da mocinha bonita que cai nas garras de um malandro qualquer, ainda mais torpe por já gozar das “vantagens” de uma eternidade degenerada, que só se mantém à custa do sacrifício de inocentes.

Aqui, esses papéis cabem a Mirta e Robin. Os personagens de Alice Pagani e Rocco Fasano correspondem, coincidência ou não, às figuras celebrizadas por Stewart e Pattinson e, de uma maneira ou de outra, isso acaba por influenciar a opinião do espectador em alguma medida. Robin, o sujeito esquisito, um tanto atormentado não se sabe bem por que, topa com a doce Mirta, que cai de amores por ele sem demora. Daí em diante, não há mais dúvidas: ainda que se note em “Não me Mate” o pendor de ostentar algum grau de inventividade, De Sica não consegue se livrar da onipresença do lugar-comum, como se a menor intenção em desobedecer ao cânone fosse por si só um anátema. Justiça se lhe faça: o gênero, definitivamente não ajuda. Parece que todos os frutos que poderiam vir dessa seara já foram mesmo colhidos. 

Inspirado no romance homônimo de Chiara Palazzolo (1961-2012), De Sica se esmera ao levar à tela cenas que deem a seu filme algum frescor, como quando tira a protagonista da sepultura e a posiciona em sequências numa pista de discoteca que, por seu turno, degringolam em atos de canibalismo nada, nada chocantes. Talvez o público de filmes como “Crepúsculo” e “Não me Mate” já tenha se habituado a fazer vistas grossas a certas banalidades de produtos cujo propósito maior é apenas entreter, mas até esse mesmo público demonstra um cansaço, não de “Não me Mate” propriamente, mas de tantas histórias parecidas.

Como sói acontecer, roteiros como o de De Sica, Palazzolo e Gianni Romoli devem muito ao destemor artístico e ao talento dos atores que dão corpo a essas tramas. Alice Pagani revela-se uma intérprete de primeira ao compreender a essência de sua Mirta e, destarte, conduzi-la com desvelo da garota pura, até meio angelical, a sua nova natureza macabra. A personagem migra sem maiores problemas de uma perspectiva para a outra, como se a vida anormal de que passa a desfrutar a fizesse reconhecer, afinal, a inestimável maldade humana. Zumbis são a encarnação da monstruosidade por excelência, uma vez que não tem compromisso com o que quer que seja, nem mesmo em se comportar da mesma forma que os vivos, argumento de que o diretor faz bom uso, ressaltando a aspecto repugnante que Mirta passa a ter. Até poder-se-ia, pesando-se um pouco a mão, admitir que “Não me Mate” se enquadraria também no coming-of-age, registrando a superação de Mirta a resistência não apenas do corpo, mas sobretudo psíquica. Momento em que se evidencia a teimosia da protagonista em entregar-se de vez ao submundo do espírito, certamente a única novidade do filme, mas nem tão nova assim.

Qualquer um que já tenha frequentado casas noturnas, seja ou não bicho desses lugares — como o personagem que Mirta encontra na escuridão ainda mais abafada por batidas de música eletrônica, o quarentão bem-vestido que se torna sua primeira vítima, com a torcida do espectador, por certo —, se depara com criaturas mais ou menos nefastas, ainda que nem o saibam. A metáfora defendida por De Sica, quer ele a admita ou não, de que a decomposição moral de Mirta implica em sua deterioração corporal e na metamorfose para outra coisa que não uma pessoa, não deixa de ter lá sua clarividência, bem como a seita dos Benedanti, os “andarilhos do bem”, dedicada a exterminar os Mortos-Vivos, quase tão sinistra quanto eles, chefiada por um tipo nebuloso como Luca Bertozzi, antagonista à altura do desempenho de Pagani vivido por Fabrizio Ferracane. Os amigos dispensáveis, como Ago, de Giacomo Ferrara, também ganham destaque, fazendo de “Não me Mate” uma alegoria interessante, mas batida, sobre a juventude e seus descaminhos, com um desfecho que insinua que Mirta vai ter de se reconhecer como o que se tornou. Tudo por culpa de suas péssimas escolhas.


Filme: Não me Mate
Direção:
Andrea De Sica
Ano: 2021
Gênero: Terror/Romance/Coming-of-age
Nota: 7/10