Como o clima de intimidação e paranoia entre as grandes potências mundiais torna-se cada vez mais vivo no cotidiano do mais comum dos homens, o cinema se aproveita da tendência e aborda a questão por meio de filmes que espelham essa realidade, ora puxando a narrativa para o lado da discussão sociopolítica, ora dando preferência à mera exploração estética do tema, abusando de sequências com o que a computação gráfica pode ter de mais moderno.
O forte de “Steel Rain” definitivamente não é a análise da conjuntura da geopolítica na Ásia, que observa há mais de setenta anos a escalada de tensão entre as duas Coreias. A eclosão de uma sequência de conflitos armados ao longo dos quais os exércitos do Norte invadiram a porção meridional, em 1950, desembocou na Guerra da Coreia, que só acabou três anos depois, em 1953, graças a um armistício. Tomando a história oficial por base, a nenhum dos dois países foi conferida a vitória, mas ao se analisar o contexto das duas nações no mundo hoje, a hegemonia da Coreia do Sul sobre a irmã do norte é evidente, com a continuação pontual das agressões de parte a parte. Norte-coreanos tacham a Coreia do Sul de lacaia dos Estados Unidos, enquanto a porção democrática do território ajuda a jogar luz sobre o dia a dia de arbítrio de Kim Jong-un, o “líder supremo” da Coreia do Norte, que mata seu povo de inanição em nome de uma ideologia em que nem mesmo ele crê. Em meio ao fogo cruzado de más palavras e péssimas intenções, o diretor sul-coreano Yang Woo-seok é hábil ao adaptar o conteúdo de sua webtoon, quadrinhos publicados na internet, para a tela. Essa trama, que junta no mesmo enredo um agente da inteligência norte-coreana, um tipo nada linear, ao assessor do presidente da Coreia do Sul, com alguns problemas familiares, uma dedicação meio obsessiva pelo trabalho e dez ou quinze quilos a mais que o aconselhável, faz recrudescer no espectador aquela sensação de ojeriza anticomunista, rediviva de tempos em tempos sob as mais diversas roupagens, aludindo ao caos diplomático da Guerra Fria (1947-1989), que por sua vez remonta à crescente animosidade entre Rússia e Ucrânia, outro enrosco da política externa contemporânea que se arrasta desde 2000, com a primeira posse de Vladímir Putin, ex-membro da KGB, a extinta autarquia do serviço secreto soviético, conhecido por seus ímpetos totalitários e sua personalidade belicosa e imperialista. É nessa cumbuca que Yang Woo-seok mete a mão sem cerimônia, sem elaborar nada de muito proveito, além do longa, propriamente.
Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos em 2017, quando da estreia de “Steel Rain”, e Kim Jong-un chegaram ao fundo do poço ao se gabarem de terem seus respectivos “botões nucleares”, capazes de destruir todo o planeta dezenas de vezes, portanto o roteiro do diretor não tem nada de mais ao conjecturar sobre como seria essa debacle da civilização, aterrada sob mil megatons de prepotência. Yang Woo-seok lança mão de dois protagonistas masculinos a fim de girar a roda de seu filme, e a tabelinha entre Jung Woo-sung e Kwak Do-won mantém um bom aproveitamento até o fim. Jung Woo-sung dá vida a Cheol-u, o Número Um, oficial do exército norte-coreano e homem de confiança do general Lee Tae-han, personagem de Kim Kap-soo, que o encarrega de exterminar dois políticos que ameaçam a paz na Coreia do Norte, tão ubíqua quanto artificial, graças à ditadura de Kim Jong-un; o espião é despachado para Kaesong, cidade histórica da Coreia do Norte, situada no extremo sul do país, junto à fronteira com a Coreia do Sul, onde está baseada a zona econômica que abriga a nata dos empresários chineses, quando presencia uma explosão. Esse é um começo nada tímido e bastante promissor do que “Steel Rain” pretende apresentar: um filme de guerra nada óbvio.
A primeira reviravolta do filme põe o Número Um e o ditador da Coreia do Norte no mesmo cerco, depois de um atentado por parte de Seul. Acompanhado por duas estudantes que compunham a claque que recepcionava o tirano, o agente consegue levá-lo à clínica obstétrica de Kwon Sook-jung, interpretada por Park Eun-hye, que, mesmo advertindo sobre sua especialidade, é coagida a tratar os ferimentos do ditador, na coxa, no tórax e na cabeça. Depois de fazer o que estava a seu alcance, Sook-jung o encaminha à clínica de Choi Soon-hyu, de Kim Ji-ho, a ex-mulher de Kwak Cheol-woo, o secretário de Segurança Nacional da Casa Azul, sede da Presidência da Coreia do Sul, vivido por Kwak Do-won, que imediatamente se coloca no encalço dos dois.
Entremeando a história com comentários acerca das diferenças abissais entre os estilos de vida nas Coreias do Sul e do Norte, Yang Woo-seok volta sua metralhadora tanto a um como ao outro país, deixando clara a intolerância que os conserva irmanados desde sempre. A certa altura, depois do atentado que vitima o ditador da Coreia do Norte, o diretor faz com que Cheol-u e Kwak Cheol-woo estreitem a relação meio esquizofrênica que são obrigados a ostentar, cada qual em defesa do que considera justo. A exposição de suas fraquezas — Kwak Cheol-woo está alijado dos filhos pelo trabalho, e sem poder contar com a compreensão da ex-mulher, ao passo que Cheol-u enfrenta um recaída no abuso de drogas, que o força a encarar mais um capítulo dramático de sua vida, talvez o mais duro —, enquanto Yang Woo-seok continua a zombar de como coreanos do sul e do norte levam a vida, personificando em seus protagonistas um retrato do que se tornaram seus respectivos países.
Valendo-se da edição ágil de Lee Gang-hee, que tem o condão de extrair o melhor tanto das sequências de ação como nos momentos em que a narrativa se encaminha para sua porção dramática, Yang Woo-seok exibe em “Steel Rain” a excelência técnica da indústria cinematográfica sul-coreana, exaltando um gênero não exatamente fácil de filme, que toma a sátira sociopolítica sob o prisma do soft nonsense. Um bom da originalidade da produção fílmica daquele país.
Filme: Steel Rain
Direção: Yang Woo-seok
Ano: 2017
Gênero: Ação/Thriller/Guerra
Nota: 9/10