Se não tomar um tiro pelas costas, a esperança será a última a morrer

Se não tomar um tiro pelas costas, a esperança será a última a morrer

Somos poucos, mas, somos unidos. Rapa de arroz queimado, grudado no fundo da panela de ferro. Carregamos no amargo da língua o sabor ferruginoso da poesia atemporal de um Carlos Drummond de Andrade. Seja como for, a gente só bate em mulher se for com flor. Porque, sem espinho, com carinho, se acaricia em redundância, em metáfora, em fantasia. Só a testosterona constrói. Isso é válido para os homens e para as mulheres. Quem sonha que está fazendo sexo sabe bem que permanece vivo. Poesia acima de tudo. Deus, se estivesse no meio de nós, se fosse um poeta, andaria com Paulo Leminski, com Ferreira Gullar ou com os irmãos Campos. Caminha-se melhor na concreta companhia dos fantasmas ilibados. Somos poucos, desencantados, mas, unidos até o talo, imantados numa monumental amostragem de entes atormentados pelos mistérios da vida. Por que sofremos? Quais são os propósitos do Criador? Existe mesmo um responsável pelo universo? Nada sabemos senão que Fernando Pessoa foi um poeta lusitano que escrevia versos dentro de uma tabacaria. Se é para morrer com classe, que fumemos os tradicionais cigarros tóxicos de antigamente. De fumaça eletrônica, cafona e cancerígena, já basta a que emana dos neurônios fatigados. Advirto aos mais jovens e ao Ministério da Saúde que, em matéria de amor, amar é verbo intransigente direto. E amamos. E amamos. E amamos. E deixamos de amar como se nunca tivéssemos amado antes. E assistimos bestificados aos grandes romances escoarem pelo ralo. Viver é um desperdício diuturno de possibilidades. No mar, vertigem; na terra, desencanto. Tentativa e erro. Líquido e incerto como uma taça de vinho. Duro é saber quando termina. Ninguém avisa. Ninguém mesmo, nem a suave brisa que assopra em nossos rostos contritos. Nós, os seres místicos. Nós, os idealistas de várias épocas. Nós, os impuros e os impudicos. Uma série infindável de adjetivos nos coaduna. Somos poucos. Coadunados. Juntos e misturados feito a rapa de arroz queimado grudado no fundo de uma panela de ferro. Gente é feita de carne e osso, mas, também enferruja. E coração enferrujado se torna um escândalo. Somos poucos, complicados, mas, unidos, carcomidos vândalos de nós mesmos. Uma leva miserável, volúvel e ultra conectada que se amarra mesmo é no contato físico, naquela coisa de abraçar, de perceber o cheiro e a temperatura do corpo alheio. Uma geração que está para a web, assim como a corda está para o pescoço. Segunda-feira é osso. Enforcar sextas-feiras. Matar saudade sem sentimento de culpa. Nas mãos certas, o creme sempre compensa. A começar pelos ombros. Depois, as costas. Por fim, os pés, os banhos aromáticos, a bossa tocando mansinha e o toque de seda. Já estamos exaustos de projetar futuros promissores. Há rumores de que o presente seja o tempo mais que perfeito para se viver. Aqui. Agora. Encontros presenciais. Aquele aconchego há tempos desejado. Deitar de bruços sobre um cabedal de oportunidades imperdíveis. Perder. Permitir-se também como um perdedor. Deixar fluir. Somos poucos. Somos unidos. Somos os guardiões de uma esperança vã, humilhada, contudo, decente, compartilhada. Somos seres convictos de que o pior da humanidade vai retornar de volta, um dia, à jaula invisível dos meandros internos do ser humano, de onde nunca deveria ter saído. Coisas assim acontecem com qualquer pessoa. Afinal, não somos tão perfeitos quanto Deus imaginava.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.