Certa vez escrevi que não conseguia atravessar uma rua sem a companhia dos meus preconceitos — não lembro quais, talvez porque ninguém tivesse nada a ver com eles. Só a mim interessavam, e muito. Preconceito, às vezes, tem mais a ver com a época em que você viveu e os costumes das pessoas que o educaram (ou mal educaram) do que contigo ou com mau-caratismo propriamente dito. Todavia ele é seu, só seu. O ideal é que não se transfira para terceiros. Mas para isso precisaríamos identificá-lo. Às vezes não o reconhecemos porque a condenação foi instilada no pacote à nossa revelia. Ou seja, a pessoa não se sente culpada uma vez que não sabe identificar outro reflexo no espelho senão o próprio, e o pior, a imagem refletida também não é tão relevante para ela, às vezes chega até a ser indiferente.
Trata-se de um arremedo de “Narciso”. Ora, não é o caso de admirar-se a si mesmo e ignorar o entorno: o preconceituoso não sabe nem de si e muito menos do resto da humanidade, muitas vezes ele é egoísta e escroto, mas é desavisado.
Digamos que não há premeditação, dolo ou má-fé. Só que há imprudência, imperícia e negligência, ou seja, há culpa. Mas como você pode ser imprudente por ser filho do seu pai e de sua mãe? Como você pode ser imperito por ter participado da colônia de férias do colégio ou como você pode ser negligente por ter nascido no Brasil e ter os amigos que tem?
Bem, tais questões são controversas, e muito discutíveis. Claro, você pode ter sido imprudente porque demorou para sair da casa de seus pais, da mesma forma que foi imperito porque casou c’uma mulher resignada igual à sua mãe (tá ferrada, coitada, mais ela do que você). Ou foi negligente porque escolheu um sujeito que tinha os ombros largos iguais os do seu pai (aí quem tá ferrada é você). E seus amigos são seus amigos porque são uns australopithecus que cometem os mesmos erros que você comete desde a pré-história até o próximo migué que vocês vão dar no imposto de renda. Bem, o que quero dizer é que a culpa tem o seu lado bom e necessário, e pode livrar nossa cara de nós mesmos, e até dos nossos mais doces e estimados preconceitos. Desde que tenhamos discernimento.
Às vezes o preconceito pode significar a âncora que vai salvar uma pessoa da loucura, talvez o fiapo de identidade mais original que lhe tenha restado, algo que poderia ter o potencial de lembrá-la quem ela é, e de onde ela veio, independentemente dela mesma. Sobretudo se cometeu a imprudência de vir do século 20. Neste caso fica difícil, quase impossível, dizer que não somos absurdamente culpados e preconceituosos, graças a Deus.
Trata-se de uma encruzilhada terrível entre exterminar aquilo que carregamos dentro de nós e aquilo em que nos transformamos: pessoas mais canalhas e sem personalidade, porém mais palatáveis e consequentemente adaptadas aos protocolos e histerias das novas gerações; testemunhas de novíssimas tecnologias, de inéditos e renovados preconceitos e da estupidez que prevalece e sempre vai prevalecer, apesar do tempo que passou, dos amigos e da vida que nos abandonaram, dos saudosismos inúteis, do certo e do errado.
Caráter — dizia mamãe — não se compra no mercadinho. Ou seja, as informações que trazemos no DNA, e as coisas que nos são repetidas desde o berço até o dia em que começamos a perder dinheiro por conta própria, jamais poderiam servir de justificativa para a desumanidade e a falta de educação, o desrespeito e a falta de compaixão com o próximo. Vale dizer: ninguém vai mudar sua essência, animal, mas procure ser civilizado e tolere o semelhante (o outro animal) que muito provavelmente o desprezará e desejará ardentemente que você desapareça do mapa. Talvez assim você consiga, ao menos, ter a chance de odiá-lo em paz. Se puder amá-lo, bem, aí esqueça tudo o que leu até agora, você está em outra dimensão. Reze por mim.
Voltando. Eu falava do preconceito que algumas pessoas têm (me incluo) contra unhões de acrílico decorados com enfeites natalinos. Qual o mal que tem? Digo, o preconceito, não os unhões. Na verdade, é algo que só faz mal a mim mesmo. Não vai afetar um milímetro a vida/breguice da pessoa que usa tais unhões, todavia aposto que ela também deve cultivar preconceitos equivalentes ou talvez mais repulsivos com relação ao meu gosto musical e às feiras de carros usados que frequento. E não duvido nada que meus ultra confortáveis mocassins apaches lhe provoquem ânsias de vômito e vergonha de pertencermos à mesma espécie, e daí? Qual o problema?
Eu digo qual é o problema. É que um lado quer obrigar o outro a engolir suas mazelas na marra, preconceitos e razão incluídos. Acontece que preconceitos são só preconceitos, não são apenas “diferenças”. Uma coisa é respeitar o espaço (a opinião do outro, a ideologia, a unha decorada, o mocassim etc) outra coisa completamente distinta é invadir e querer ocupar o espaço alheio com suas regras e arbitrariedades e chamá-las de “diferenças”. Eis a cilada. Se é diferente, não é igual, não cabe no mesmo lugar. A questão é de física clássica. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. Cada um com suas unhas decoradas e mocassins apaches nos seus respectivos quadrados: — Ah, sou linda e obesa mórbida assumida, mantenho uma relação aberta com a Britney, meu texugo. Na verdade, ela é uma doninha que nasceu no corpo de um texugo, está em processo de transição. Toda manhã a amamento, e ainda sobra muito leite.
E agora ela quer vender o excedente no hortifrúti: — Tenho o certificado do Ibama e todos os atestados de controle de pragas e zoonoses do município, meu leite performático é reconhecido desde a praça Roosevelt até os karaokês de Mauerpark, em Berlin, portanto minha situação é perfeitamente legal, seu merda.
Ocorre que o dono do hortifrúti não foi exatamente amigável. Ele disse que não ia alugar box para uma gorda maluca casada com um texugo viciado em drogas: — Maldito boçal, Britney é uma doninha! Maldito preconceituoso! Só porque sou gorda?
Não foi bem isso, mais ou menos: O dono do hortifrúti garantiu que a obesidade mórbida e o(a) texugo em questão não passaram de apêndices que surgiram a reboque: o que realmente o incomodou foram os unhões de acrílico decorados com motivos natalinos. Alegou que já estamos em meados de fevereiro, e que as árvores e enfeites natalinos deveriam ter sido removidos no dia de Reis, seis de janeiro. E que antes de ele ter tido a chance de se explicar, segundos antes de vomitar no texugo —quando madame sacou o seio, e espirrou leite performático na cara dele — e depois de ela o xingar de burguês fascista nojento, enfim, antes de a polícia apartar a briga, eles poderiam ter tido a oportunidade de se ignorar. Mas infelizmente não foi isso o que aconteceu devido ao excesso de comunicação de ambos, e agora, ah, agora o caldo entornou, agora é tarde demais, não vai rolar.