O que perturba o protagonista do primeiro conto de “Visão Noturna”, de Tobias Carvalho, é a incapacidade de se lembrar dos sonhos. Basta abrir os olhos, que tudo vai por “água abaixo, para os anais do inconsciente”. Então, após assistir ao filme “Daydreaming”, ele descobre que existe um estado chamado sonho lúcido. Ou seja, sonhar sabendo que se está sonhando. Passa a consumir literatura sobre o tema, assiste vídeos no Youtube e aprende macetes para verificar se cruzou a vigília ou não. Logo, experienciar essa realidade do sono torna-se irresistível, a ponto de “a vida só ser interessante quando dormia”. No domínio impalpável de possibilidades infinitas, atravessa paredes, come nos melhores restaurantes do planeta, cruza os sete mares em cruzeiros, voa em zepelins, enxerga a humanidade pela perspectiva de uma bactéria.
Até que, numa incursão pelas dependências de um palácio de concreto colorido, ele topa com uma jovem, que lhe revela ser ali o ponto de encontro dos sonhares lúcidos. Seu nome é Matylda, uma enfermeira polonesa que trabalha num lar de idosos. Novos encontros levam a uma amizade, que leva a um caso amoroso. E acompanhá-los elaborando uma rotina de conversas e aventuras nessa representação inusitada ao mesmo tempo que familiar do mundo que conhecemos evoca a dinâmica do casal que protagoniza o longa “Sonhando Acordado”, escrito e dirigido pelo cineastra francês Michel Gondry.
O autor gaúcho, que estreou vencendo o Prêmio Sesc de Literatura em 2018, constrói uma das melhores narrativas de abertura de uma antologia brasileira. É saboroso flanar com seus personagens no entra e sai de planos oníricos, na flexibilização das regras da normalidade de modo a pôr em par a dimensão de estranhezas e suas dimensões interiores, seus aprendizados sentimentais. Tudo conduzido por uma escrita macia, segura e inventiva, que brinca com o gênero e lança piscadelas para teorias freudianas sobre interpretações do sonho, longe de qualquer maneirismo, longe de se apoiar com dois braços nas muletas das figuras de linguagem.
O conto seguinte, “Arromanticidade”, consegue ser ainda melhor por conta do complexo e benfeito procedimento de entrelaçar tramas. Com um tom radicalmente distinto, o enredo parte de uma tragédia decorrente de duas crianças brincando com fogo enquanto a mãe de uma delas toma banho. O trauma que incide da infância marca para sempre a vida dos envolvidos no incidente, causando imensurável impacto tanto nas relações sociais quanto na (de)formação individual, a ponto de ser trancado no olvidamento da dor. Então, levada pelo instinto/fleuma da maternidade, a busca de uma personagem por um diário de sonhos pressiona a todos pelos labirintos da memória.
Para o leitor que pulou a orelha e o resumo na contracapa, aqui fica claro que o ato de sonhar é a chave de composição dos textos. Ora como mote, ora como contextura, ora como segmento paralelo. Outro aspecto que chama atenção é a preferência por finais abertos, possibilitando a especulação de resoluções para as histórias. Funciona bem, sobretudo pela opção de explorar as frestas ambivalentes da realidade. Ocorre que mesmo os textos esgarçados, que se movem à maré de circunstâncias reveladas ou não, carecem de um fio (aparente, invisível, sugerido) que comande a ação e o sentido. E este é o problema do inoperante terceiro conto.
O argumento é algo mirabolante. Uma repórter vai cobrir um exótico festival de música numa cidadezinha na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, e se depara com uma série de assassinatos misteriosos paralelo ao culto a um escritor obscuro que publicou um romance premonitório inspirado em sonhos, cujo conteúdo é visto como fraude por um escritor rival que fundou o Realismo Natural, um movimento da nova tradição literária baseado no exagero da psicologia humana dos personagens. Posto dessa forma, fica a sensação de um rumor farsesco, um dobre autorreferencial, mas a narrativa segue como que orientada por um botão seletor que nunca encontra a frequência certa, trocando de gênero e de tônica, sintonizando subtramas falíveis onde desfilam personagens rasos e efêmeros. Suspeito que a ideia era operar na transfusão do plasma fantasioso para o real, inspirado num elemento sobrenatural da safra do bestiário cortáziano ou das esquisitices selvagens de um Horacio Quiroga. Suspeito apenas, talvez.
No quarto e último conto, o autor volta a acertar a mão, embora sem o brilhantismo dos textos iniciais. É o relato mais sóbrio, melancólico até, que vai além das incursões oníricas, explorando pulsões emocionais dirigidas pela sexualidade, pela autognose, pelo dilema que estreita rancor e perdão. Um homem tem um sonho constante com um ex-colega de escola, que lhe maltratava e excluía. Aconselhado por uma amiga, decide cavar respostas no passado, quando descobre que havia perdido uma conexão com parte da infância. A narrativa se desenvolve num suspense de baixa voltagem, avançando por uma experiência disruptiva que diz respeito ao entendimento de que a memória é um puzzle que não precisa estar completo para que se tenha a visão da imagem que se formou. O texto também incorpora um personagem de outro conto, não estabelecendo uma unidade geral, mas articulando uma correlação inquietante, sugestiva.
Tobias Carvalho é um escritor de notável talento, que se destaca pela destreza com que opera no simples, pela coerência que se manifesta nas suas escolhas para manipular os elementos do universo que criou. Ainda assim, é uma escrita em nítida formação (ou melhor, em processo de transição), que carecia principalmente do dedo de um editor para convencê-lo a extrair o terceiro conto do conjunto. Sem este, seria uma antologia insuperável. Não é. Mas continua sendo um livro de livre imaginação, que se caracteriza pela intensa criatividade, que mais empolga que decepciona, oferecendo especiais momentos de leitura.
Livro: Visão Noturna
Autor: Tobias Carvalho
Editora: Todavia
Páginas: 112 páginas
Avaliação: 3.5/5