Suspense premiado, da Netflix, valoriza a inteligência do espectador, mas também vai tirar sua paz

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Férias constituem o período ideal para que tudo o que é varrido para debaixo do tapete na vida em família torne-se tão insuportavelmente majestoso que termina por aflorar, esparramando toda a sujeira pelo salão. O cinema é pródigo de exemplos em que, de um jeito ou de outro, em famílias felizes, mais ou menos parecidas, ou nas escandalosamente desditosas, cada qual à sua maneira, retratando-o de modo escrachado, como em “Férias Frustradas” (1983), dirigido por Harold Ramis, ou valendo-se de humor sofisticado, em que degustam notas amargas de um drama que preza pelo equilíbrio, de acordo com que é levado à tela em “Pequena Miss Sunshine” (2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris. No que diz respeito a “Tempo Compartilhado” (2018), se equiparações fossem necessárias, o roteiro do diretor mexicano Sebastián Hofmann, coescrito com Julio Chavezmontes, sem dúvida se aproxima muito mais do trabalho de Dayton e Faris, mas conta com a força inestimável de que só as narrativas de suspense, com suas idas e vindas e seus altos e baixos, são capazes.

O filme não demora a virar um imenso quebra-cabeça, aborrecidamente divertido depois da introdução morna, sobre o que pode haver de mais torpe por trás de almas aparentemente pias, cuja única meta viria a ser ajudar pais de família de classe média, sempre encalacrados e consumidos pela estafa, a proporcionar alguns dias de descanso a suas esposas e filhos, num lugar bonito, com alguma mordomia e, o principal, sossego. Como se pode supor, nada disso acontece e Pedro, o protótipo mais bem-acabado da descrição acima, além de sofrer ele mesmo as consequências de sua ingenuidade, estende esses efeitos nefastos à mulher, Eva, vivida por Cassandra Ciangherotti, e Pedrinho, o Raton, filho dos dois. A princípio um tanto perdido em meio à complexidade do que Hofmann deseja registrar, Luis Gerardo Méndez passa a compreender o que quer dele o diretor e sua performance muda da água para o vinho, aí, sim, sendo possível ter a dimensão exata de seu talento. Méndez captura de vez a atenção do espectador e a partir de sua fisionomia enérgica, quiçá até pendendo para a auxese, se vai tomando pé do drama que se prefigura.

O capitalismo tem uma habilidade nada desprezível em inventar objetos e serviços de que jamais precisaríamos a fim de que nos jogar na cara nossa insignificância. Compra quem quer, e até aí, nenhum problema; a situação fica realmente delicadas é quando se usa de má fé — o que muita gente define como “esperteza”, “sagacidade”, “arrojo”, “tino comercial” — para empurrar goela abaixo do consumidor essa tranqueira, numa manobra covarde em quem está do lado de fora do balcão jamais sabe ao certo o que está levando e se terá condições de reivindicar o justo. Em “Tempo Compartilhado”, o diretor alude aos tais clubes de férias no intuito de levantar a bola dos direitos de quem paga a conta, e pior, paga pelo que não quer. O repouso de Pedro, Eva e Raton num tal Everfields, à primeira vista um resort de luxo, mas na verdade um ajuntamento de farofeiros sem o menor traquejo social, revela-se um calvário no instante em que descobre que o espaço que alugara seria dividido com Abel, o tipo entre farsesco e cínico de Andrés Almeida, e sua família buliçosa. Pedro, de fato um cândido, acredita nas boas intenções alheias e na premissa de que as pessoas erram por desmazelo, por descuido, mas nunca de caso pensado, e reporta o incidente a gerência. Fica sabendo que o overbooking não configura nenhuma ilegalidade caso se o pratique com consentimento de duas das três partes, isto é, Abel e o Everfields. Se até essa altura o protagonista se mostrara um sujeito judicioso, mesmo estoico em certa proporção, o que se passa a encontrar no personagem de Méndez é um travo da derrota, como cidadão, como indivíduo e mesmo como homem, uma vez que pode estar expondo sua família a cenários perigosos em meio a uma gente inegavelmente estranha. À medida que a história avança, com eventos que só o diminuem — a aula de tênis com um instrutor que flerta com sua mulher desavergonhadamente, experiência que acaba em sangue —, Pedro se convence de que há algo de muito mórbido por trás de tudo aquilo; contudo, o que o magoa de verdade é sentir que Eva e Raton demonstram um vínculo despropositado para com os novos “parentes”, uma intimidade de que, provavelmente, ele mesmo nunca gozado.

A guinada que se vai constatar em “Tempo Compartilhado”, com um Pedro mais e mais imbuído de um espírito justiceiro, só é possível graças à entrada em cena de Andres, tão deslocado quanto ele nesse Éden decaído. Almas fragmentadas que se completam em suas carências e suas misérias, o personagem de Miguel Rodarte partilha com o protagonista a sensação de ter sido enganado pelo Everfields, não sem boa dose de sadismo. Num casamento de aparências com Gloria, de Montserrat Marañon, dia a dia mais decadente por ele ser um subalterno da lavanderia do complexo hoteleiro, esforçado, mas incapaz de despertar o interesse dos chefes, e ela, uma auxiliar administrativa pronta a fazer qualquer coisa para ascender na carreira, Andres se cansa de nadar contra a maré e resolve ajudar Pedro em seu plano de reparação, o que degringola num prejuízo irreparável para a vida profissional da mulher, já sobremaneira alquebrada desde a morte do filho.

A linguagem cinematográfica escolhida por Sebastián Hofmann, plena de oscilações dramáticas de intensidade de maior ou menor impacto, fazem de “Tempo Compartilhado” um filme ágil — ainda que o prólogo quase ponha tudo a perder, frise-se — sem deixar de ser contemplativo, como convém a uma trama que se pretende um estudo sensível da alma humana, em especial quando submetida a uma conjuntura de permanente ultraje. Hofmann imprime a seu filme a aura de um diário, em que um homem que se percebe desimportante até para os seus faz suas inconfessáveis confissões, mas sem que se tenha a sombra da morte por resultado. Chega a ser uma proeza em tempos como esses.


Filme: Tempo Compartilhado
Direção: Sebastián Hofmann
Ano: 2018
Gênero: Thriller/Drama
Nota: 9/10