Se há um gênero de filme que consegue se reinventar conforme passam-se os anos, esse gênero é o terror. É inquestionável que o terror muitas vezes se aproveita de argumentos empregados em outras ocasiões, mas como os tempos são outros, como outro também é o entendimento das pessoas diante da vida, mesmo filmes abertamente inspirados em produções consagradas, cults ou blockbusters, apresentam suas adaptações, felizes ou nem tanto.
“O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface” (2022) poderia ser tanto a prequel, a introdução tardia, de “O Massacre da Serra Elétrica” (1974), dirigido por Tobe Hooper, como o reboot de “Halloween — A Noite do Terror” (1978), levado às telas por John Carpenter. Nos dois trabalhos, de dois excelentes realizadores que resolveram desde sempre atropelar preconceitos e fazer o espectador pensar por meio de histórias tolas ao primeiro olhar, observa-se a vontade de defender a perspectiva da parte mais frágil, ainda que irada e monstruosa. Esse é o ponto nevrálgico pelo qual se pode explicar o sucesso dos filmes de terror através dos anos.
Aqui, Sally Hardesty, a atormentada personagem de Olwen Fouéré, tenta encontrar, afinal, a criatura bestial que assassinou seus amigos quase cinquenta anos antes, e o filme de David Blue Garcia cresce na medida em que esses acertos de contas parece mesmo perto de uma definição. Garcia persegue esse alvo, por piores que sejam os deslizes narrativos em dados momentos. “O Massacre da Serra Elétrica” alude a problemas sociológicos graves, como todo bom terror, a exemplo da repulsa ao diferente — que só o é por motivos fortíssimos —, do isolamento e do consequente obscurantismo nas cidadezinhas do interior dos Estados Unidos (uma ideia que sobrevive perfeitamente se transposta para um outro país qualquer, quem sabe o Brasil), da reação extrema a toda sorte de mudança. Tem ainda mais força no filme os revezes da gentrificação, a acomodação natural de pessoas mais abastadas em regiões menos populosas. O diretor não faz um cavalo de batalha com essa evidência, porém sua escolha implica uma abordagem mais cuidadosa. O início da história é preparado a fim de mostrar a peregrinação de Melody, vivida por Sarah Yarkin, sua irmã Lila, interpretada por Elsie Fisher, e o amigo delas, Dante, personagem de Jacob Latimore, se deslocando para Harlow, no coração do Texas, no intuito de reformar o pequeno rancho que adquiriram. Junto com os três, vai um ônibus, lotado de influenciadores digitais ávidos por conhecer o lugar. A chegada da caravana, por óbvio, desperta o ressentimento e a indignação dos poucos habitantes de Harlow, uma massa estática de americanos tranquilos, nada afeita a interações tão efusivas e feéricas. O anticlímax que divide o roteiro de Fede Alvarez, Chris Thomas Devlin e Rodo Sayagues em dois atos remete ao desentendimento com a dona de casa de Alice Krige, a antiga moradora da propriedade comprada pelo trio de forasteiros. Resta evidente que houve uma tentativa de estelionato, uma vez que a ocupante da fazendola parece não ter sido comunicada da venda, e, destarte, recusa-se a sair. Como se assiste na sequência, o imbróglio não se resolve de imediato, mas ela e o filho, Leatherface, de Mark Burnham, são mesmo expulsos de casa. Doravante, o que se tem é a conversão de Leatherface, um sujeito assustadoramente estranho, mas até então inofensivo, numa fera movida a ódio e desejo de vingança, em especial depois que o trauma por que ele e a mãe passaram provoca nela uma reação que se configura num desfecho trágico, que por seu turno permite ao público conhecer melhor o antagonista, um homem à procura de identidade própria depois de uma vida inteira de ingerências por parte da mãe. A entrada em cena do personagem de Moe Dunford com se presta a gerar ainda mais tensão e verter o filme para uma espécie de jogo, em que o espectador a desafiado a tomar partido de um dos contendedores, ressalvando-se que a trama permanece meio nebulosa até o encerramento, malgrado transmita-se a ideia — inequívoca e equivocada — de que quem vive em grandes metrópoles é necessariamente insensível às dificuldades daqueles que habitam os rincões mais escondidos num país continental feito os Estados Unidos. Premissa de um maniqueísmo atroz, mas a que “O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface” não pode renunciar, já que está inteiramente calcado nela.
O filme é uma tentativa louvável de se compreender as mágoas fundamentais da América a partir da vida de cidadãos comuns, que têm a vontade e o direito de prosperar; o problema se estabelece quando essa determinação e esses pleitos passam por cima uns dos outros e, mais grave, tratoram sem dó as liberdades alheias, o que não redunda em outra coisa se não em barbárie, que em linguagem fílmica se conhece por terror. “O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface” quer voltar para casa, mas essa não parece ser mais uma possibilidade nos tempos cada vez mais sinistros em que temos vivido.
Filme: O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface
Direção: David Blue Garcia
Ano: 2022
Gênero: Terror
Nota: 8/10