Se escalar uma montanha não parece o passatempo mais natural e cômodo que alguém pode encontrar, o que dizer de quem decide escalar não uma, mas catorze montanhas, justamente as mais altas do mundo, em apenas sete meses, uma seguida da outra? Essa foi a forma como o alpinista nepalês Nirmal Purja, o Nims, escolheu viver, e para tanto teve de convencer mais gente, nepaleses como ele, a embarcar com ele nessa jornada de perigo e autoconhecimento, rumo a mais de oito mil metros acima do nível do mar.
O montanhismo está no DNA do Nepal. O país abriga uma cadeia de picos, a subcordilheira Mahalangur Himal, nos Himalaias, composta pelo maciço do Everest, que por sua vez abriga o monte homônimo, o mais alto e mais famoso, com exatos 8.848,86 metros, além das montanhas de Lhotse, com 8.516 metros da base ao cume; Nuptse, com 7.855 metros; e Changtse, que concentra um paredão de rocha sempre revestido de neve de 7.580 metros. Por ser uma região até hoje conflagrada, alvo da disputa com a China, a fronteira internacional entre o distrito nepalês do Solukhumbu e o distrito de Tingri da Região Autônoma do Tibete, chegar ao topo de cada um desses monumentos da natureza demanda do candidato a herói muita paciência, tempo e, por óbvio, dinheiro, também empregado no pagamento de uma ou outra propina aos guardas responsáveis por vigiar a área e para a contribuição com o trabalho dos sherpas, os nativos que guiam e auxiliam os montanhistas profissionais em todo o território, uma tradição que os nepaleses fazem questão de manter, e que une a obrigação ancestral de recepcionar bem os hóspedes e a necessidade de se ganhar a vida num meio hostil à interação, sobretudo de estrangeiros, abandonado pelas altas esferas do poder público e perigoso. Muito perigoso.
O primeiro alpinista a se tornar célebre por executar a façanha a que Purja se determinou foi o sul-tirolês Reinhold Messner, em 1978. Messner levou dezesseis anos para subir ao lugar mais alto de cada um dos catorze picos, sem oxigênio suplementar, e por quatro décadas foi considerado o montanhista mais destemido da história. Até que em 2019 surgiu Purja, com um plano muito mais ousado: realizar o mesmo percurso em sete meses, tempo 27 menor. Como mostra o diretor Torquil Jones no documentário “14 Montanhas: Nada é Impossível” (2021), Purja sabia que poderia bater o recorde de Messner. Seu “Projeto: Possível” visava a redobrar os treinamentos sobre-humanamente — e essa era mesmo uma questão, já que seu sobrepeso ameaçaca botar tudo a perder —, o que lhe permitiria encurtar a preparação para escalar cada pico de dois meses para um dia; acautelar-se sobre as intempéries tanto como fosse possível e manifestar boa vontade para vencer a burocracia diplomática. Num quesito o pioneiro Messner continua imbatível: o nepalês teve de recorrer a balões de oxigênio extra, ainda que em circunstâncias pontuais, em trechos cuja concentração de ar respirável cai a menos de um terço do normal. Decerto, esse foi um dos detalhes que preponderaram a fim de que levasse a cabo a empreitada; uma das elevações lhe tomaria pelo menos quatro dias, e ele a escalou em poucas horas. Claro que a conta acabou chegando e um grande mal-estar, com direito a fortes náuseas, vômito e febre baixa, jogou-lhe na cara que homem nenhum é tão poderoso assim.
Um homem certamente não, mas cinco podem fazer frente à cadeia de montanhas mais inamistosas da Terra, tanto que fizeram. Purja divide seus quinze minutos de fama com os sherpas Mingma Gyabu, Galjen, Lakpa Dendi e Gesman Tamang, quando apresenta a equipe ao público de “14 Montanhas: Nada é Impossível”, momento em que o filme explora essa vaidade de novos personagens, talvez o único patrimônio com que podem contar. A determinação do grupo em subir no teto do mundo não perde espaço para a sensibilidade ao que acontece à sua volta e percebe-se em Jones a intenção de fomentar a natureza heroica do quinteto, que encontra ânimo para ajudar no resgate de mochileiros perdidos, malgrado a decisão pudesse implicar em perda de prazos e o consequente fim do sonho de Purja.
Misturando elementos de realismo fantástico — nesse particular, o emprego de animações resolve alguns dos problemas do filme — e da narrativa propriamente épica, o diretor faz bom uso do material captado para o documentário, valendo-se ainda de efeitos especiais e edição caprichada quanto a exaltar a figura de seu biografado, num desfecho desabridamente laudatório, quase hagiológico. A menção a um distúrbio cerebral em decorrência da exposição a altitudes extremas e os depoimentos de Reinhold Messner sobre o caráter autopunitivo de aventuras como essa, fazem de “14 Montanhas: Nada é Impossível” um relato que desmistifica a peregrinação a lugares remotos sob o pretexto da tal reconexão com a natureza. O filme fica muito mais interessante se tomado à luz da antropologia, quando Torquil Jones destaca a confluência de esforços para que se concretize uma aspiração um tanto íntima. Acertadamente, “14 Montanhas: Nada é Impossível” dá a Nirmal Purja espaço reduzido para seu discurso de autocelebração, na sequência terminal, em que o montanhista ensaia mumunhas anticapitalistas. Agora que dispõe de mais tempo, Purja poderia estudar um pouco.
Filme: 14 Montanhas: Nada é Impossível
Direção: Torquil Jones
Ano: 2021
Gênero: Biografia/Aventura
Nota: 8/10