A Revista Bula fez uma seleção de filmes que acabaram de chegar à Netflix. Todos os selecionados foram aclamados pela crítica e premiados em festivais de cinema — comum entre eles: a capacidade de provocar reflexões e questionamentos. Na lista, o espanhol “Madres Paralelas” (2021), de Pedro Almodóvar, que mostra que ser mãe vai muito além do vínculo de sangue; o mexicano “A Noite do Fogo” (2021), de Tatiana Huezo, que fala sobre a dureza da condição feminina; o americano “Audible” (2021), de Matt Ogens, que trata de deficiência física mas opta por transcender o assunto; e o alemão “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” (2022), de Ashley Eakin, curta-metragem sobre o extermínio de deficientes de origem ariana, prova cabal da insanidade perversa de Hitler. As críticas são de Giancarlo Galdino.

Aclamada por seus documentários, Tatiana Huezo começou a se ressentir da falta de poesia em seu trabalho. Tudo o que não pôde sonhar em seus filmes anteriores — caso do excelente “El Lugar Más Pequeño” (2011), sobre a guerra civil de El Salvador (1979-1992), seu país natal —, Huezo faz questão de fantasiar em “A Noite do Fogo” (2021), sem prescindir da essência de contestação política que marca sua carreira.
É justamente essa sua bagagem histórica que lhe capacita a se desdobrar sobre uma narrativa tão intrincada quanto a guerra travada entre o governo do México e os cartéis de drogas, o flagrante desrespeito aos direitos humanos e o tráfico de mulheres para fins sexuais. Em grande parte das vezes, o que se entende por polícia não cumpre suas funções constitucionais e, ou por inépcia ou por se vender mesmo, não faz nada. Eis o cenário perfeito para que o sequestro de mulheres e meninas continue à toda carga, e as que não podem ser aproveitadas pelas quadrilhas pagam com a própria vida, ocasião em que seus cadáveres são espalhados pelos vilarejos como forma de aviso. Huezo, salvadorenha radicada no México, constrói uma trama estarrecedora, e tanto pior porque explorada sob a perspectiva de uma criança. Por mais que os adultos pensem que os pequenos não têm a devida dimensão do que acontece, Ana fareja o perigo e transpira pânico, como todo mundo. A personagem de Ana Cristina Ordóñez González, numa performance de gente grande, é a tradução perfeita da vida daqueles aldeões.
Numa das primeiras sequências do longa, Rita, a mãe de Ana, esconde a filha num buraco na terra, apavorada com a iminência de novas ofensivas das guerrilhas do narcotráfico, que sempre trazem em sua esteira a presença dos sequestradores de mulheres. A personagem de Mayra Batalla está tomada pelo pavor, e ainda tem de exercer marcação cerrada sobre o marido, que viajou para os Estados Unidos a fim de enviar dinheiro para o sustento da família, mas sumiu. A única perspectiva profissional no lugarejo é a coleta de papoula, mas as crianças podem frequentar a escola — pelo menos enquanto há um professor, prestes a se desligar da turma por causa da criminalidade inclemente.
As crianças se viram como podem quanto a não replicar o terror e a paranoia dos adultos. Ana e suas amigas inseparáveis, María, vivida por Blanca Itzel Pérez, e Paula, de Camila Gaal, criaram uma brincadeira em que as três devem entoar uma mesma canção sustentando a mesma nota, expediente que lhes serve de terapia, enquanto aos mais velhos só resta se entregar à tortura de pensar que a vida ali sempre pode ficar pior. Aos poucos, a tensão se espalha por toda parte, e os cidadãos são obrigados a levantar barricadas contra os membros dos cartéis. Às garotas, resta seguir com o hábito de usar o cabelo curto, não por causa dos piolhos, como atesta Rita, mas para passarem por meninos e não serem capturadas. Mas mesmo que consigam escapar do domínio do submundo, continuam à mercê da pobreza e da ignorância, outros dos males que assolam esses povoados e sufocam qualquer possibilidade de uma vida verdadeiramente livre.
Um corte no tempo leva “A Noite do Fogo” um pouco mais adiante. As garotas agora têm pouco mais de doze anos, continuam com a brincadeira de cantar a mesma música no mesmo ritmo, usam o cabelo excessivamente curto, como antes, mas agora também apresentam os conflitos típicos das meninas-moças e sentem-se todas atraídas pelo mesmo homem, o professor, que resiste com elas. Ser mulher ainda é um grande desafio, e a chegada da puberdade para Ana, coroada com o sangue da menarca, é motivo de suplício para Rita. A protagonista, agora encarnada por Mayra Membreño, sabe que a mãe tem razão, mas não acha justo se abster de assistir às aulas, nadar no rio, manter conversas despretensiosas com María e Paula, rir. Viver, enfim.
A fotografia de Dariela Ludlow ressalta as cores da selva, das águas, a fim de evocar a atmosfera agreste que dota o filme de beleza, mas também da truculência daquele cenário. A inadequação das pessoas que ali vivem diante das injúrias a que são submetidas se reflete no semblante de Ana, tanto a menina quanto a moça, num trabalho de composição primoroso de González e Membreño. Muito do valor de “A Noite do Fogo” como obra de arte cabe a elas, que, em conjunto, são capazes de elaborar uma personagem tão carismática quanto vigorosa, mormente quando Ana precisa encarar a realidade de ser uma mulher feita, a despeito das melenas tosadas. Uma ameaça com a qual terá de aprender a existir doravante.
Tatiana Huezo é uma das diretoras mais talentosas do novíssimo cinema. Seu traquejo em manejar situações em que o enredo caminha para a tragédia ao mesmo tempo em que exalta a poesia por trás dessas pessoas — e mesmo dessas perturbações — é uma qualidade que só grandes profissionais do cinema têm, quer se dediquem à verdade do documentário ou à ilusão das histórias ficcionais.

O último ano do colégio não é fácil para ninguém. Além da necessidade de se acordar excepcionalmente cedo, do pouco interesse em determinada disciplina, das desavenças com a própria biologia, todos tivemos questões ainda mais graves a administrar, que parecem muito mais assustadoras que de fato são por causa da instabilidade emocional com que a adolescência generosamente nos brinda.
Matt Ogens sabe do que está falando em “Audible”. Mesmo que seja um ouvinte, isto é, alguém sem deficiência auditiva, que ouve e se comunica do modo tradicional, Ogens tem um amigo surdo, com o qual convive desde garotos, e sempre ouvira falar da Maryland School for the Deaf, referência no ensino de estudantes surdos nos Estados Unidos. De uma forma transversal, sempre estivera muito próximo a seu objeto de estudo, e a vontade de se aprofundar no tema crescia à medida que aumentava seu prestígio como profissional de cinema. Diretor do badalado “From Harlem With Love” (2014), documentário em curta-metragem vencedor do Emmy, Ogens parecia disposto a dobrar a aposta sete anos depois e em 2021 mais uma de suas narrativas em versão compacta ganhou o mundo, indo um pouco mais longe.
Ogens viu no time de futebol da escola a oportunidade de falar dos assuntos que já o inquietavam há alguns anos, ainda que sempre restassem destinados a um futuro que nunca chegava. O espírito de luta, de combate, de garotos comuns, ainda que obrigados a lidar com condições que os apartavam dos demais e, a primeira vista, os inferiorizavam, era um argumento sedutor demais para permanecer adormecido numa gaveta qualquer da memória sabe-se lá por quanto tempo. Mais do que isso, a figura de Amaree McKenstry, o capitão da equipe de futebol americano da escola, era forte por si só e escondia por trás de um garoto comum uma história digna de um filme cuja essência poderia interessar a muito mais gente que só adolescentes, surdos ou amantes de esportes. Como sói acontecer nas ocasiões em que se toma por escolha um assunto para o qual pouca gente dá importância.
Era esse arco narrativo que Ogens buscava. Sem perder de vista o propósito de desenvolver “Audible” sob a perspectiva dos adolescentes, o diretor propõe ao espectador uma experiência afetiva, uma vez que fala a uma parte de sua história que o público certamente guarda com carinho, malgrado todas as amarguras que seus verdes anos lhe possam ter suscitado. A proximidade da vida adulta, materializada pelo vestibular, o baile de formatura, as providências de que cada um passa a ter de se encarregar, se revestem da devida seriedade ao longo do enredo, momento em que o esporte continua a fazer parte da trama, mas como metáfora, como pano de fundo, uma colaboração adicional para que se compreenda as idiossincrasias dos personagens, especialmente, por óbvio, de McKenstry, cuja resiliência diante dos pontapés da vida o fizeram quase imbatível. Os altos e baixos da vida em campo se refletiram em sua jornada pessoal e vice-versa, e o protagonista fora invulgarmente talentoso quanto a desviar das soluções fáceis e erradas ou mesmo jogar tudo para o alto e declarar-se vítima das circunstâncias, da natureza, do acaso, da própria vida.
“Audible” é sobre as idas e vindas de um garoto, mas também sobre de que forma McKenstry pode representar pessoas com vulnerabilidades semelhantes às dele. Surdo devido à meningite contraída na primeira infância, aos dois ou três anos de idade, seu pai acabou não aguentando o tranco e foi embora, mágoa que o garoto não faz questão alguma de esconder. O documentário de Ogens, rodado como uma ficção — o chamado docudrama —, registra a volta do pai do protagonista, ávido por refazer o vínculo com o filho depois de uma temporada como traficante de heroína e hoje frequentador devotado de uma congregação protestante. O roteiro se esmera em salientar outros componentes da intimidade de McKenstry, como a relação com Teddy, amigo que também frequentava a escola para surdos, mas optou por mudar para uma instituição mista e não suportou a carga de humilhações e abusos, e seu convívio bem mais solar com Jalen Whitehurst, homossexual assumido e ex-namorado de Teddy, e Lera Walkup, com quem experimenta as dores e as delícias do primeiro amor. Como se não bastasse, McKenstry é o único que não ouve em sua família — fica claro o sentimento de exclusão do garoto em meio aos parentes, visivelmente alheios à sua angústia — e a delicadeza de Ogens também sugere que ele e a mãe enfrentam apuros financeiros. A vida adulta bate à sua porta sem cerimônia, definitivamente.
O grande trunfo de um filme como este é apresentar os obstáculos da vida de um personagem com uma deficiência específica como parte da vida de qualquer pessoa, tenha a limitação que tiver, física, mental ou as que tangem ao espírito, muito mais danosas. A indicação ao Oscar de Melhor Documentário em Curta-metragem coroa com justiça o trabalho de Matt Ogens, que parece mesmo ter tomado gosto por essa linguagem. O diretor tem desenvolvido outras produções do gênero, como “Leap of Dance”, sobre a célebre academia de dança da Nigéria, e mais um, ainda sigiloso, sobre o 11 de Setembro. Se seguirem o alto padrão de “Audible”, pode-se esperar que faça outras visitas ao Teatro Dolby em breve.

Definitivamente, a maternidade é uma das obsessões de Pedro Almodóvar. No caso de “Mães Paralelas”, o oitavo filme em que trabalha com Penélope Cruz, uma de suas musas, ao longo dos últimos 25 anos, Almodóvar extrai da história, com o auxílio providencial da estrela, as cores e o movimento que caracterizam sua obra, ao passo que Cruz decuplica o potencial dramático do texto do diretor, um casamento que decerto ainda vai muito mais longe.
O drama, de 2021, mistura os elementos que fazem de Almodóvar o Almodóvar que o mundo aprendeu a respeitar como o artista incomparável que é, pela ordem, a narrativa visceralmente pessoal de uma personagem plena de nuances, os desdobramentos ético-morais de sua conduta e a elaboração reflexiva sobre um episódio da história política moderna da Espanha. Trata-se da agonia de duas mulheres, que tem as vidas estranhamente imbricadas, remontando à busca feminina por reconhecimento e independência, processo que nunca se completa e cuja necessidade nunca se extingue. Almodóvar tem um dom especial para melodramas e em “Mães Paralelas” as atuações entram na intensidade perfeita quanto a fazer do filme mais uma das tantas preciosidades levadas à tela pelo cineasta, que capta com sensibilidade rara o que suas atrizes querem lhe oferecer.
Janis, a personagem de Cruz, é uma fotógrafa madrilenha cujo desejo de ser mãe vai sucumbindo à urgência do tempo e ao ritmo desregrado da carreira. Como se o destino se encarregasse de dar uma força, ao seu modo sempre atabalhoado, Janis acaba engravidando de Arturo, o arqueólogo forense vivido por Israel Elejalde, depois de uma seção de fotos para promover o novo livro dele. Num corte meio seco demais, que pode confundir um pouco o espectador, Janis surge prestes a dar à luz, dividindo o quarto com Ana, mãe solteira como ela, e apenas dezessete anos. O contraponto da performance de Milena Smit, assumidamente despretensiosa, se anunciava uma aposta arriscada, mas funciona muitíssimo bem, tanto que Smit e Cruz seguem partilhando a cena até o final. O convívio obrigatório e aparentemente efêmero das duas já é o suficiente para que encontrem vários pontos de contato entre si, momento em que Almodóvar principia a conferir a “Mães Paralelas” a carga de emoção de seu roteiro, pendendo inicialmente da euforia para a placidez, receita a que o diretor vai acrescentando reviravoltas saborosamente bizarras, com cuidado.
“Mães Paralelas” parece que vai sair do eixo, mas é tudo método. Janis, no começo exalando vontade de viver por todos os poros, passa a despertar a piedade da audiência, mormente depois do reencontro com Arturo, que vai até seu apartamento a fim de conhecer Cecilia, a filha que teve com ela. O que vem a seguir, a primeira guinada do enredo, é o gancho de que Cruz se vale para capturar de vez o público, frisando as idas e vindas de sua personagem. Smit, por seu turno, imprime a Ana a discrição quase apagada que se apreende de sua vida. Ambas se tornaram mães sem querer, mas para a Ana a maternidade além de um fardo, se converte na lembrança de um dos eventos mais infelizes que já foi forçada a protagonizar. Ao contrário de Janis, não está sozinha, mas logo se descobre completamente abandonada pela mãe, Teresa, a atriz decadente que, depois de anos, volta a ter uma oportunidade de deslanchar outra vez, desde que se submeta a começar a turnê da peça que vai estrelar pelo interior, deixando para trás a filha e a neta recém-nascida justo quando mais precisam. Aitana Sánchez-Gijón fecha esse arco verdadeiramente dramático com uma participação sóbria, mas cirurgicamente precisa, enquanto Rossy de Palma como Elena, a melhor amiga de Janis, também se faz notar, seja pela figura extravagante, seja pela personalidade algo enigmática de sua personagem, que como se confere a dada altura, tem razão de ser.
A discussão de assuntos colaterais, a exemplo do quão tóxica pode ser a chegada de um filho, sobretudo sem o devido esteio familiar para essa nova mãe, e as chagas ainda por se fecharem na Espanha, alusão aos mortos e desaparecidos políticos ao longo da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) — argumento trabalhado de maneira insatisfatória por Almodóvar, que se presta mesmo só a justificar a presença do personagem de Elejalde —, vêm à superfície com força e propósito desiguais, privilegiando-se por óbvio (e corretamente) o primeiro, ainda que, pesando-se um pouco a mão, se possa alegar que em “Mães Paralelas” ambos sirvam de ponte um para o outro e os dois se projetem numa terceira abordagem. Passados mais de oitenta anos do fim dos conflitos, em que nacionalistas e fascistas se enfrentaram impiedosamente e deixaram um rastro de meio milhão de mortos e abriu caminho para a ditadura igualmente sanguinária de Francisco Franco (1892-1975), Janis ainda não sabe o que foi feito do cadáver do bisavô, infortúnio que contribui para o problema que o nascimento de Cecilia acaba encerrando, e é essa a essência do filme. A pequena tem força o bastante para fazer com que se descerrem uma infinidade de nós, para o bem e para o mal, principalmente os que ligavam Ana, que sobrevive a mais uma tragédia, e Janis.
“Mães Paralelas” é Almodóvar na veia. Cheio das referências já tradicionais nos filmes do diretor, como o vermelho, a marca registrada que aqui recebe a demão oportuna do diretor de fotografia José Luis Alcaine, a narrativa faz questão de começar simples, banal até, e ir se enroscando sobre si mesma, como a serpente que se prepara para dar o bote em quem assiste. O encerramento, absurdo e lírico, remete a sentimentos como a efemeridade, a eternidade, a continuação da vida, que sempre se impõe. Braços nos servem para enterrar nossos mortos e embalar os frutos de nossa descendência.

O nazismo foi uma chaga tão profunda e tão nociva na história que consegue a façanha de ser a um só tempo rechaçado peremptória e sinceramente, despertar a curiosidade entre mórbida e científica acerca das barbaridades que defendia e, o grande absurdo, ganhar a simpatia tácita — e às vezes nem tanto —, neste século 21, de indivíduos ou cruéis ou ignorantes que sempre acabam encontrando algum viés pseudofilosófico no sistema de governo adotado pela Alemanha de 1933 a 1945. O Terceiro Reich, o Reich de mil anos, como o proclamara Adolf Hitler (1889-1945), seu facinoroso líder, exaltando a potência germânica depois do Sacro Império Romano (800-1806) e do Império Alemão (1871-1918), o primeiro e o segundo Reiche, respetivamente, durou “apenas” doze, imprimindo na história da humanidade prejuízos civilizatórios de toda ordem, generalidades que qualquer um conhece. O que nem todo mundo sabe é que o modo de operar dos nazistas, asqueroso por natureza, os impedia de admitir como seres humanos indivíduos da chamada raça ariana, mas que apresentavam os tais desvios, seja do que se cria um comportamento social, caso dos homossexuais, seja do ponto de vista meramente anatômico, como os deficientes físicos. É a partir desse ponto que a questão do nazismo como visão de mundo intelectualmente defensável se esfarela de vez.
Embora curtíssimo, “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” já nasceu clássico. Com pouco mais de catorze minutos, incluídos os créditos, o trabalho da americana Ashley Eakin encara o nazismo sob essa perspectiva absolutamente nova, valendo-se de seu roteiro enxuto, coescrito com Shawn Lovering, e sem prescindir de detalhes técnicos que exaltam seu lado de obra de arte, como a fotografia primorosa. O burburinho em torno da história, crescente desde 21 de janeiro de 2022, quando da pré-estreia promocional, é muito justo, todavia não seja nem de longe o suficiente para fazer o espectador médio alcançar a grandeza do enredo. Em raras ocasiões, num tempo de projeção tão curto, um filme fora capaz de chocar, encantar, cristalizar ideias e suscitar outras reflexões sobre o fenômeno sociológico mais estudado da história da civilização.
Numa sala de aula frequentada por poucos privilegiados da dita raça pura, a professora interpretada por Hanneke Talbot expõe um problema de matemática cujo enunciado agride até o neonazista mais empedernido. Decerto, a personagem é obrigada a seguir essa metodologia pedagógica torta, uma vez que vive com um menino falto do braço esquerdo, e resta aí um detalhe a ser explorado. Não se consegue saber em que circunstâncias o garoto, vivido por Knox Gibson, fora alcançado por esse infortúnio — fala em doença hereditária, mas qual? —, traumático, por óbvio, mas por si só insuficiente para definir sua sorte, se vivesse sob um regime que prezasse pela observância e defesa dos direitos humanos. Mas o nazismo é a negação da condição humana, diversa na origem, e na sequência se assiste a seu calvário. Antes disso, ainda em sala, o aluno interpretado por Nathaniel McParland sugere ser impossível determinar a solução do problema, uma vez que poderia envolver variáveis sensíveis demais. Um moleque maior, quiçá um repetente, menciona a necessidade de se atacar o impasse de um jeito mais radical, e nada científico.
A filósofa alemã judia Hannah Arendt (1906-1975) certamente foi uma das intelectuais que dissecou o nazismo com mais profundidade. Arendt, da mesma forma que Eakin, tomou uma premissa para a qual ninguém dava importância até então, aparentemente tão irrelevante que terminava ignorada por completo. Considerada uma das pensadoras de maior prestígio no mundo ainda hoje — passado quase meio século de sua morte —, para a filósofa só fazia sentido falar de nazismo se primeiro se averiguasse o entorno de Hitler, condição indispensável para que a barbárie tomasse as proporções que conseguira atingir. Chegara a Adolf Eichmann (1906-1962), cujo julgamento em Jerusalém acompanhou in loco, tomando notas que terminaram por constituir “Eichmann em Jerusalém”, um de seus trabalhos mais célebres, publicado dois anos depois do veredito que condenou o médico à forca em 1961. Nele, Arendt define Adolf Eichmann como um sujeito sem maiores particularidades, com aspirações e carências de um homem como outro qualquer, cuja principal distinção se encontrava no aspecto peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava, o próprio ditador tedesco. Eichmann provavelmente passaria ao largo da história, não fosse a empreitada algo homérica levada a termo por agente do Mossad, o serviço secreto israelense, que se deslocaram para a Argentina a fim de prendê-lo e extraditá-lo, como retrata “Operação Final” (2018), de Chris Weitz.
Malgrado a aridez do mote central, o filme é capaz de cometer suas delicadezas. A passagem em que a professora reza com o personagem de Gibson o Pai Nosso, de onde a diretora sacou o título do curta, exprime bem o teor do que se pretende com a história. Confiantes em Deus, os dois sabem que são os poderosos da Terra quem definem os rumos da humanidade, mormente em tempos de nuvens tão negras e tão pesadas que barram qualquer esperança de sensatez e piedade. A perseguição a que o garoto é submetido, arbitrariedade a que responde com a coragem que termina por redimi-lo, não é um episódio isolado, claro, e se ele escapa dessa vez, acabará tendo de se render cedo ou tarde. A forma pela qual Ashley Eakin opta por encerrar “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” — não exatamente verossímil, mas delirantemente poética —, com a informação imediatamente posterior do assassinato de mais trezentas mil pessoas com alguma necessidade especial, além da castração química de outros quatrocentos mil indivíduos desse grupo (afinal, era necessário se fazer temido), assinala que às vezes um sonho é tudo com que se pode contar. E um sonho nunca é pouco.