Definitivamente, a maternidade é uma das obsessões de Pedro Almodóvar. No caso de “Mães Paralelas”, o oitavo filme em que trabalha com Penélope Cruz, uma de suas musas, ao longo dos últimos 25 anos, Almodóvar extrai da história, com o auxílio providencial da estrela, as cores e o movimento que caracterizam sua obra, ao passo que Cruz decuplica o potencial dramático do texto do diretor, um casamento que decerto ainda vai muito mais longe.
O drama, de 2021, mistura os elementos que fazem de Almodóvar o Almodóvar que o mundo aprendeu a respeitar como o artista incomparável que é, pela ordem, a narrativa visceralmente pessoal de uma personagem plena de nuances, os desdobramentos ético-morais de sua conduta e a elaboração reflexiva sobre um episódio da história política moderna da Espanha. Trata-se da agonia de duas mulheres, que tem as vidas estranhamente imbricadas, remontando à busca feminina por reconhecimento e independência, processo que nunca se completa e cuja necessidade nunca se extingue. Almodóvar tem um dom especial para melodramas e em “Mães Paralelas” as atuações entram na intensidade perfeita quanto a fazer do filme mais uma das tantas preciosidades levadas à tela pelo cineasta, que capta com sensibilidade rara o que suas atrizes querem lhe oferecer.
Janis, a personagem de Cruz, é uma fotógrafa madrilenha cujo desejo de ser mãe vai sucumbindo à urgência do tempo e ao ritmo desregrado da carreira. Como se o destino se encarregasse de dar uma força, ao seu modo sempre atabalhoado, Janis acaba engravidando de Arturo, o arqueólogo forense vivido por Israel Elejalde, depois de uma seção de fotos para promover o novo livro dele. Num corte meio seco demais, que pode confundir um pouco o espectador, Janis surge prestes a dar à luz, dividindo o quarto com Ana, mãe solteira como ela, e apenas dezessete anos. O contraponto da performance de Milena Smit, assumidamente despretensiosa, se anunciava uma aposta arriscada, mas funciona muitíssimo bem, tanto que Smit e Cruz seguem partilhando a cena até o final. O convívio obrigatório e aparentemente efêmero das duas já é o suficiente para que encontrem vários pontos de contato entre si, momento em que Almodóvar principia a conferir a “Mães Paralelas” a carga de emoção de seu roteiro, pendendo inicialmente da euforia para a placidez, receita a que o diretor vai acrescentando reviravoltas saborosamente bizarras, com cuidado.
“Mães Paralelas” parece que vai sair do eixo, mas é tudo método. Janis, no começo exalando vontade de viver por todos os poros, passa a despertar a piedade da audiência, mormente depois do reencontro com Arturo, que vai até seu apartamento a fim de conhecer Cecilia, a filha que teve com ela. O que vem a seguir, a primeira guinada do enredo, é o gancho de que Cruz se vale para capturar de vez o público, frisando as idas e vindas de sua personagem. Smit, por seu turno, imprime a Ana a discrição quase apagada que se apreende de sua vida. Ambas se tornaram mães sem querer, mas para a Ana a maternidade além de um fardo, se converte na lembrança de um dos eventos mais infelizes que já foi forçada a protagonizar. Ao contrário de Janis, não está sozinha, mas logo se descobre completamente abandonada pela mãe, Teresa, a atriz decadente que, depois de anos, volta a ter uma oportunidade de deslanchar outra vez, desde que se submeta a começar a turnê da peça que vai estrelar pelo interior, deixando para trás a filha e a neta recém-nascida justo quando mais precisam. Aitana Sánchez-Gijón fecha esse arco verdadeiramente dramático com uma participação sóbria, mas cirurgicamente precisa, enquanto Rossy de Palma como Elena, a melhor amiga de Janis, também se faz notar, seja pela figura extravagante, seja pela personalidade algo enigmática de sua personagem, que como se confere a dada altura, tem razão de ser.
A discussão de assuntos colaterais, a exemplo do quão tóxica pode ser a chegada de um filho, sobretudo sem o devido esteio familiar para essa nova mãe, e as chagas ainda por se fecharem na Espanha, alusão aos mortos e desaparecidos políticos ao longo da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) — argumento trabalhado de maneira insatisfatória por Almodóvar, que se presta mesmo só a justificar a presença do personagem de Elejalde —, vêm à superfície com força e propósito desiguais, privilegiando-se por óbvio (e corretamente) o primeiro, ainda que, pesando-se um pouco a mão, se possa alegar que em “Mães Paralelas” ambos sirvam de ponte um para o outro e os dois se projetem numa terceira abordagem. Passados mais de oitenta anos do fim dos conflitos, em que nacionalistas e fascistas se enfrentaram impiedosamente e deixaram um rastro de meio milhão de mortos e abriu caminho para a ditadura igualmente sanguinária de Francisco Franco (1892-1975), Janis ainda não sabe o que foi feito do cadáver do bisavô, infortúnio que contribui para o problema que o nascimento de Cecilia acaba encerrando, e é essa a essência do filme. A pequena tem força o bastante para fazer com que se descerrem uma infinidade de nós, para o bem e para o mal, principalmente os que ligavam Ana, que sobrevive a mais uma tragédia, e Janis.
“Mães Paralelas” é Almodóvar na veia. Cheio das referências já tradicionais nos filmes do diretor, como o vermelho, a marca registrada que aqui recebe a demão oportuna do diretor de fotografia José Luis Alcaine, a narrativa faz questão de começar simples, banal até, e ir se enroscando sobre si mesma, como a serpente que se prepara para dar o bote em quem assiste. O encerramento, absurdo e lírico, remete a sentimentos como a efemeridade, a eternidade, a continuação da vida, que sempre se impõe. Braços nos servem para enterrar nossos mortos e embalar os frutos de nossa descendência.
Filme: Mães Paralelas
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 2021
Gênero: Drama/Comédia/Suspense
Nota: 9/10