O cineasta russo Sergei Eisenstein montou, nos anos 1920, o seu projeto mais ousado. A ideia seria levar para as telas um filme baseado no livro “O Capital”, de Karl Marx. Não se tratava de um documentário, mas sim de uma obra que tomaria por base a estrutura do romance “Ulisses” (1922), do irlandês James Joyce. Naquela época, o escritor modernista havia dito que o diretor de “O Encouraçado Potemkin” era o único capaz de levar sua história, que se passa num único dia, para o cinema.
Eisenstein foi o mestre da montagem cinematográfica, tendo elaborado teorias a respeito dos cortes de uma cena para outra. Tanto ele como Joyce e Marx entenderam antes dos outros a importância do fragmento e das fraturas sociais trazidas pela modernidade. O mundo passara a se apresentar de forma descontínua e quase incompreensível. Ninguém mais conseguia ter uma ideia do todo social, político e cultural. Somente pedaços e partes da realidade, muitas vezes desconexas, estavam à disposição.
Fragmentação do mundo foi uma das descobertas de Marx, a partir do século 19, em seus estudos sobre o capitalismo. Como dar forma, no caso de um livro, para uma realidade que se estilhaçava aos olhos das pessoas? Francis Wheen tem uma leitura original para a escrita de Karl Marx: ele teria antecipado o que os surrealistas e os modernistas como Joyce fariam apenas no século seguinte, no pós-Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A nova forma do mundo exigia outra forma de usar as palavras.
A conexão Eisenstein-Marx-Joyce é o fio condutor do filme “Notícias da Antiguidade Ideológica” (2008), de Alexander Kluge. Conta-se nessa obra monumental de 492 minutos a saga do projeto pensado pelo diretor russo. Também é uma discussão a respeito da atualidade das ideias de Marx, durante a crise financeira global de 2008/2009, e suas múltiplas relações com outras áreas do conhecimento. E uma dessas áreas é, sem dúvida, a arte e principalmente a escrita literária.
A poesia, o romance e, sobretudo, o teatro foram fundamentais para Marx. Era um pensador que viveu da palavra, muito mais do que da ação concreta. A todo momento, seu pensamento recorre à literatura como meio de conhecimento do mundo e das pessoas. Na virada para o século 20, Freud foi outro autor que utilizou fartamente as imagens da escrita, as textuais, e da ficção para formular conceitos, a começar pelo famoso Complexo de Édipo, baseado na tragédia grega de Sófocles.
Colagens literárias
Como assinalou Wheen, a escrita de Marx recorre a estilos e formas que só fizeram sentido no século 20. Quando escrevia “O Capital”, Marx deu indicações do novo caminho a ser explorado. Ele mostrava aos amigos o livro “A Obra-prima Ignorada”, de Balzac. A novela balzaquiana conta a história de um pintor, chamado Frenhofer, que criou m quadro para ter a mais completa representação da realidade. Mas a obra nada tem de realista e, na verdade, exibe formas aleatórias e confusão de cores sem sentido. Tratava-se da nova configuração do mundo moderno.
“Na época em que escreveu ‘O Capital’, Marx superava a prosa de convenção com sua radical colagem de literária — justapondo vozes e citações de mitologia e literatura, relatório de inspetores de fábrica e contos de fada, nos moldes de ‘Cantos’, de Ezra Pound, e ou de ‘A Terra Devastada’, de [T.S.] Eliot”, diz Francis Wheen, que é biógrafo do pensador alemão. “‘O Capital’ é tão dissonante quanto [a obra do músico Arnold] Schoenberg, tão angustiante quanto [as histórias do escritor Franz] Kafka.”
A prosa de Marx é um jogo intrincado de mil referências. Em “Karl Marx and World Literature”, o crítico alemão S.S. Prawer realizou o mais amplo inventário do uso da literatura pelo autor de “O Capital”. Tragédias gregas, como a de Prometeu, e peças de Shakespeare eram livros de cabeceira. Como todo bom germânico, ele utilizou Goethe, que fornecia inspiração com a dupla Fausto e Mefistófeles — o pacto demoníaco pelo desenvolvimento e pelo dinheiro. O realismo de Balzac o fascinava.
O livro “18 de Brumário” traz diversas imagens teatrais para analisar as revoltas de 1848 em Paris e a ascensão de Luís Bonaparte por meio de um golpe de Estado. Até hoje essa obra é o modelo de análise de conjuntura. Com base na veia literária, Marx chamava Bonaparte de Crapulinski (referência à palavra crápula), que era o personagem do poema “Dois cavaleiros”, de Heinrich Heine. A cena teatral tornou-se ali uma metáfora recorrente para a análise política.
A abertura de “18 Brumário” traz a clássica visão dramatizada dos eventos históricos e as imagens teatrais: “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
O “Manifesto Comunista” exibe a representação da Europa como um palco político e seus fantasmas, tal como o Hamlet pai da peça de Shakespeare. O assombro era o comunismo que incendiava a cabeça dos europeus na década de 1840, época de grande crise social e econômica. Essa ideia do espectro marxista e, também, shakespeareano foi retomada por Jacques Derrida em sua análise do “mundo fora dos eixos”, no período recente pós-queda do muro de Berlim.
Pelas lentes de Marx, a França pós-1948 é praticamente uma tragédia shakespeariana: “O Parlamento brindou o público com o espetáculo de uma assembleia de monarquistas que obstinadamente cerrou ao seu rei banido as portas pelas quais poderia retornar à pátria. Ricardo III assassinara Henrique VI dizendo que ele seria bom demais para estar neste mundo e que o seu lugar era o céu. Os monarquistas declararam que a França seria um lugar ruim demais para ter os seus reis de volta”.
Escrita múltipla
Como provou Marx, a escrita deve variar de acordo com o seu objeto de análise. Isso vale para um ficcionista ou para um cientista. Foi a lição deixada por ele aos leitores. Exemplo: o francês Jean Paul Sartre preferia dramatizar, em peças teatrais, as situações que seriam difíceis de abordar por meio da prosa filosófica. Preferiu escrever o romance “A Náusea” para desdobrar questões do existencialismo. É por isso que autores como Jacques Lacan e Derrida devem ser lidos como produtores de literatura, porque a escrita deles carrega múltiplos significados.
Ainda no século 19, os autores positivistas imaginaram a escrita científica para descrever os dados da realidade. A palavra teria um significado preciso e, se possível, único — isso incluindo a ficção e a poesia. Às artes de forma geral, restaria a imaginação. Puro engano. Freud notou que os poetas “chegam antes” às coisas do mundo. Ou seja, o escritor capta antes dos cientistas os elementos dispersos da realidade. E para decifrar esse mundo onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, Marx tinha de se ancorar na fluidez da literatura.