O nazismo foi uma chaga tão profunda e tão nociva na história que consegue a façanha de ser a um só tempo rechaçado peremptória e sinceramente, despertar a curiosidade entre mórbida e científica acerca das barbaridades que defendia e, o grande absurdo, ganhar a simpatia tácita — e às vezes nem tanto —, neste século 21, de indivíduos ou cruéis ou ignorantes que sempre acabam encontrando algum viés pseudofilosófico no sistema de governo adotado pela Alemanha de 1933 a 1945. O Terceiro Reich, o Reich de mil anos, como o proclamara Adolf Hitler (1889-1945), seu facinoroso líder, exaltando a potência germânica depois do Sacro Império Romano (800-1806) e do Império Alemão (1871-1918), o primeiro e o segundo Reiche, respetivamente, durou “apenas” doze, imprimindo na história da humanidade prejuízos civilizatórios de toda ordem, generalidades que qualquer um conhece. O que nem todo mundo sabe é que o modo de operar dos nazistas, asqueroso por natureza, os impedia de admitir como seres humanos indivíduos da chamada raça ariana, mas que apresentavam os tais desvios, seja do que se cria um comportamento social, caso dos homossexuais, seja do ponto de vista meramente anatômico, como os deficientes físicos. É a partir desse ponto que a questão do nazismo como visão de mundo intelectualmente defensável se esfarela de vez.
Embora curtíssimo, “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” já nasceu clássico. Com pouco mais de catorze minutos, incluídos os créditos, o trabalho da americana Ashley Eakin encara o nazismo sob essa perspectiva absolutamente nova, valendo-se de seu roteiro enxuto, coescrito com Shawn Lovering, e sem prescindir de detalhes técnicos que exaltam seu lado de obra de arte, como a fotografia primorosa. O burburinho em torno da história, crescente desde 21 de janeiro de 2022, quando da pré-estreia promocional, é muito justo, todavia não seja nem de longe o suficiente para fazer o espectador médio alcançar a grandeza do enredo. Em raras ocasiões, num tempo de projeção tão curto, um filme fora capaz de chocar, encantar, cristalizar ideias e suscitar outras reflexões sobre o fenômeno sociológico mais estudado da história da civilização.
Numa sala de aula frequentada por poucos privilegiados da dita raça pura, a professora interpretada por Hanneke Talbot expõe um problema de matemática cujo enunciado agride até o neonazista mais empedernido. Decerto, a personagem é obrigada a seguir essa metodologia pedagógica torta, uma vez que vive com um menino falto do braço esquerdo, e resta aí um detalhe a ser explorado. Não se consegue saber em que circunstâncias o garoto, vivido por Knox Gibson, fora alcançado por esse infortúnio — fala em doença hereditária, mas qual? —, traumático, por óbvio, mas por si só insuficiente para definir sua sorte, se vivesse sob um regime que prezasse pela observância e defesa dos direitos humanos. Mas o nazismo é a negação da condição humana, diversa na origem, e na sequência se assiste a seu calvário. Antes disso, ainda em sala, o aluno interpretado por Nathaniel McParland sugere ser impossível determinar a solução do problema, uma vez que poderia envolver variáveis sensíveis demais. Um moleque maior, quiçá um repetente, menciona a necessidade de se atacar o impasse de um jeito mais radical, e nada científico.
A filósofa alemã judia Hannah Arendt (1906-1975) certamente foi uma das intelectuais que dissecou o nazismo com mais profundidade. Arendt, da mesma forma que Eakin, tomou uma premissa para a qual ninguém dava importância até então, aparentemente tão irrelevante que terminava ignorada por completo. Considerada uma das pensadoras de maior prestígio no mundo ainda hoje — passado quase meio século de sua morte —, para a filósofa só fazia sentido falar de nazismo se primeiro se averiguasse o entorno de Hitler, condição indispensável para que a barbárie tomasse as proporções que conseguira atingir. Chegara a Adolf Eichmann (1906-1962), cujo julgamento em Jerusalém acompanhou in loco, tomando notas que terminaram por constituir “Eichmann em Jerusalém”, um de seus trabalhos mais célebres, publicado dois anos depois do veredito que condenou o médico à forca em 1961. Nele, Arendt define Adolf Eichmann como um sujeito sem maiores particularidades, com aspirações e carências de um homem como outro qualquer, cuja principal distinção se encontrava no aspecto peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava, o próprio ditador tedesco. Eichmann provavelmente passaria ao largo da história, não fosse a empreitada algo homérica levada a termo por agente do Mossad, o serviço secreto israelense, que se deslocaram para a Argentina a fim de prendê-lo e extraditá-lo, como retrata “Operação Final” (2018), de Chris Weitz.
Malgrado a aridez do mote central, o filme é capaz de cometer suas delicadezas. A passagem em que a professora reza com o personagem de Gibson o Pai Nosso, de onde a diretora sacou o título do curta, exprime bem o teor do que se pretende com a história. Confiantes em Deus, os dois sabem que são os poderosos da Terra quem definem os rumos da humanidade, mormente em tempos de nuvens tão negras e tão pesadas que barram qualquer esperança de sensatez e piedade. A perseguição a que o garoto é submetido, arbitrariedade a que responde com a coragem que termina por redimi-lo, não é um episódio isolado, claro, e se ele escapa dessa vez, acabará tendo de se render cedo ou tarde. A forma pela qual Ashley Eakin opta por encerrar “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” — não exatamente verossímil, mas delirantemente poética —, com a informação imediatamente posterior do assassinato de mais trezentas mil pessoas com alguma necessidade especial, além da castração química de outros quatrocentos mil indivíduos desse grupo (afinal, era necessário se fazer temido), assinala que às vezes um sonho é tudo com que se pode contar. E um sonho nunca é pouco.
Filme: Perdoai-nos as Nossas Ofensas
Direção: Ashley Eakin
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 9/10