Brutal e perturbador, filme da Netflix sobre vingança prende o expectador até o último segundo

Brutal e perturbador, filme da Netflix sobre vingança prende o expectador até o último segundo

Homens acomodados também se enfurecem. Essa é a conclusão óbvia a que se chega depois dos cem minutos de “Bad Day for the Cut” (2016), do talentoso diretor norte-irlandês Chris Baugh. Em seu trabalho de estreia, Baugh assinala com rara mordacidade a decadência da civilização em todo o Reino Unido, paulatinamente mais violento, mais seduzido pelo crime organizado em suas diversas possibilidades, rindo amarelo das desgraças da vida em comunidade com seus personagens raivosos em cenários cuja propensão à degenerescência social e ao crime fala por si só. O enredo de “Bad Day for the Cut” toma corpo nessa Irlanda do Norte natal do cineasta, tendo por base o roteiro coescrito com Brendan Mullin, cabendo perfeitamente a qualquer lugar do mundo, uma vez que se há alguma coisa tão displicentemente global, essa coisa é mesmo a bestialidade, chaga que, por mais que o tempo passe e a humanidade teime em nunca aprender nada, resta incólume aonde quer que se vá. Daí o interesse que despertou em públicos distintos, recebendo hoje a alcunha entre laudatícia e jocosa de cult.

Aqui, Donal, o fazendeiro de meia-idade vivido por Nigel O’Neill, ainda partilha sua intimidade com a mãe, Florence, de Stella McCusker. Seus poucos momentos de respiro fora de casa se resumem a frequentar o pub da cidadezinha em que mora, no interior da Irlanda do Norte, e trabalhar nos carros velhos que lhe confiam os vizinhos. Essa paz artificial é capaz de satisfazê-lo, mas a impressão de que a vida o atravessa, deixa um travo de frustração, que administra como pode — principalmente com a atividade na pequena oficina, já que experimenta uma solidão patológica desde sempre, dedicando-se com interesse especial a uma van. Sua carência é de tal ordem que a traquitana lhe fomenta desejos quase impublicáveis de aventuras pelo mundo a bordo do veículo, reformado, de preferência, e em breve.

Depois de uma bebedeira em seus raros instantes de devaneio, Donal acorda entre perturbado e confuso, e se depara com o cadáver de Florence na sala, morta depois do que parece ter sido um latrocínio dentro de casa. O’Neill é hábil em elaborar o turbilhão de sentimentos que assalta seu personagem, contraditórios e que o lançam numa espiral de pânico, revolta e ódio, nessa ordem, tudo com a discrição que a personalidade de Donal exige. Nem bem sepulta a mãe e dois bandidos encapuzados o atocaiam, determinados a executá-lo de modo a fazer com que sua morte pareça um suicídio. Numa reviravolta milimetricamente calculada, Baugh dá a seu protagonista a oportunidade de começar a ir à forra, sempre respeitando sua índole metódica. Ao conferir a identidade de um dos agressores, fica sabendo que se trata de Bartosz, papel de Jozef Pawloski, que por sua vez também nutre desejos de reparação envolvendo a irmã, interpretada por Anna Prochniak. A relação improvável de Donal e Bartosz culmina num plano entre ousado e absurdo de acudir a garota e justiçar a morte de Florence; só que eles não contavam que 1) os criminosos supostamente por trás dos dois delitos são liderados por Frankie Pierce, tão charmosa quanto implacável, uma atuação brilhante de Susan Lynch, que capta essas e muitas outras facetas da personagem; 2) o homicídio brutal e inexplicado da mãe de Donal não foi casual. Tudo indica que o assassinato de Florence remonta à década de 1970, quando da participação dela em guerrilhas do IRA, o Exército Republicano Irlandês, organização paramilitar que luta desde 1919 pela separação e autonomia da Irlanda do Norte em relação ao Reino Unido, oficialmente extinto em 2005, mas logo substituído por facções dissidentes. No que diz respeito à família de Donal, pode ser que existam ainda mais segredos sobre sua mãe de que ele sequer desconfie.

Baugh é arrojado o bastante para distribuir seus ovos de Páscoa pela trama sem que o segredo seja revelado de todo. “Bad Day for the Cut” (algo como “um dia ruim para se aborrecer”, em tradução livre), preserva a aura de anti-herói de seu personagem central, mesmo no momento em que ele já está visivelmente enrascado. A ira que sente pelos assassinos da mãe volta-se contra ele, e a narrativa dá mais uma de suas guinadas ao lhe proporcionar sair por cima das investidas da quadrilha, ávida por enquadrá-lo, mas exercendo a ética que a malandragem old school faz questão de manter. O banho de sangue que se segue é quase que mero protocolo numa produção que celebra o thriller de crime ao melhor estilo “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), dos irmãos Coen, ou parte da vasta cepa de Tarantino. Sem perder de vista o propósito de enfatizar o aspecto delirante, violento, pleno de deboche e ironia — atente para de que maneira utensílios  de casa como ferro e panela são usados —, o diretor se vale de Donal para aprimorar o componente de sátira política em “Bad Day for the Cut”, tecendo comentários aparentemente diáfanos sobre a situação esquizofrênica de seu país, mas não só; a essa altura, Donal torna-se o alter ego de Baugh na exposição de suas críticas acerca dessa virulência gratuita contra tudo, um traço indelével da natureza humana, sem dúvida, mas cuja onipresença hoje chega às raias da insânia, com consequências farsescamente patéticas, porque o personagem incorpora à sua vida a responsabilidade de processar traumas para os quais não estava preparado. Com toda a sua valentia, Donal não passa de um fanfarrão.

Os enquadramentos limpidamente abertos de Ryan Kernaghan são o contraponto técnico de Chris Baugh para um filme que se desdobra no fio da navalha, mas que alivia a tensão também com o emprego de clássicos do country e folk, as músicas que o ingênuo Donal aprecia. Antes tivesse ido tomar uma cerveja no botequim de sempre, ao som de uma canção nostálgica qualquer antes de se meter a paladino da justiça. Poderia ter se poupado de muitos dissabores.


Filme: Bad Day for the Cut
Direção: Chris Baugh
Ano: 2016
Gênero: Thriller/Crime
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.