Filme brutal, da Netflix, sobre a miséria da condição humana fará você agonizar no sofá

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A crueza com que “Udta Punjab” trata de certos assuntos parte o coração. Misturando as ilusões do mundo falsamente alegre de astros da música que poderiam considerar-se plenos de vida, mas que sucumbem à tentação da morte, o filme do diretor hindu Abhishek Chaubey se entranha no submundo do tráfico de drogas no estado de Punjab, na fronteira da Índia com o Paquistão, expondo o perfil de seus consumidores, dentre os quais um se destaca por não ser exatamente um dos tantos infelizes que se deixam levar pelo arrebatamento da cocaína ou pelos sonhos agridoces que a heroína proporciona. Isso lhe parece muito pouco.

Uma praga como o abuso de entorpecentes em todo o mundo sempre traz em seu bojo reflexões sobre como o homem chega a certo estado e estas, por sua vez, podem levar à possibilidade de mudança. Esse poderia ser um dos raciocínios por trás de “Udta Punjab”. Tudo começou a dar ainda mais errado com o mundo a partir de março de 2020. Dias depois, antes mesmo do fim daquele mês, a humanidade foi tragada por uma espiral de medo e paranoia e paralisada por alguma coisa que não entendia, sobre a qual não tinha o menor conhecimento e, pior, que a impelia rumo a uma nova apreensão da vida, estranha, rude, perversa. O filme de Chaubey data de quatro anos antes da pandemia de covid-19, 2016, mas uma epidemia de dimensões globais assola o planeta há quase 2.500 anos, quando Heródoto (485 a.C.–425 a.C.), historiador da Grécia Antiga, relatou o emprego de folhas de Cannabis sativa secas, sob a forma de fumo, entre determinado público e em dadas circunstâncias. Já a partir desse momento, o homem foi perdendo a mão e querendo sempre um pouco mais de euforia, ou da capacidade de se alienar do mundo, ou de ver coisas que só admitia da cabeça para dentro, das quais tinha medo, vergonha ou um orgulho inconfessável e fora de propósito. Cheio de sutileza mesmo em meio a temas tão áridos — uma das definições por excelência do cinema feito na Índia, reflexo do próprio jeito de ser de seu povo —, “Udta Punjab” vai semeando a discórdia e a necessidade de atentar-se para a seriedade do que quer comunicar, e por óbvio não só entre sua gama original de espectadores.

O “Punjab voador”, tradução livre do título, hoje luta para se ver livre da maldição da propaganda que ajudou a disseminar, extraoficialmente. O estado, conhecido pelo inconsciente coletivo do hindu médio como uma terra que autoriza que qualquer um fuja da realidade e estimula as divagações — tenham elas a constituição que tiverem — se perdeu na distopia da terra sem lei que hoje mais assombra que encanta. A ameaça de vir a ser um México asiático, ainda mais nefasta vide a imensidade de sua população, torna-se cada vez palpável, realismo que Chaubey é capaz de assinalar como poucos; ninguém se assusta, portanto, com o sucesso do longa, censurado em território indiano (ainda que a produção tenha sido obrigada a divulgar um caudaloso termo de responsabilidade no prólogo), mas amplamente aceito e “perseguido” no circuito alternativo mundo afora, justamente por instigar a curiosidade sobre o que já se suspeitava: a ousadia do diretor ao dissecar assunto tão pouco palatável, com que o cinema quase sempre só consegue lidar enfiando os dois pés na jaca da violência gratuita, o que não deixa de contribuir para a glamourização do problema e não para sua possível solução.

“Udta Punjab” começa com as invencionices habituais dos filmes indianos, nada que comprometa o que se vai ver pelas próximas duas horas e meia. Um embrulho contendo heroína é arremessado com toda a diligência por alguém que parece se preparar para a tarefa há muito. O destino da droga é o território imediatamente contíguo à divisa paquistanesa e indiana, isto é, o entorpecente deixa o Paquistão e entra ilegalmente na Índia, sem que ninguém seja molestado. Na sequência, Tommy Singh, o roqueiro vivido por Shahid Kapoor, se apresenta num estádio lotado entoando uma canção de franca apologia às drogas, acompanhado pela multidão ensandecida. Chaubey logo faz questão de evidenciar o aspecto farsesco da situação, pautando o entusiasmo artificial do público, como que só reproduzindo o comportamento do ídolo, que por seu turno apenas finge aquela autossatisfação, dando aos fãs o que eles querem, cumprindo seu papel de falso profeta, portanto, ao propagar uma filosofia enganosa.

Os personagens que de uma forma ou de outra orbitam o mundo frágil de Tommy, como a traficante Pinky, de Alia Bhatt, ou seu empresário, Sartaj, interpretado por Diljit Dosanjh, alimentam o ego do artista, sempre ávido por bajulação, ao passo que o empurram para um abismo do qual custará muito a sair. As performances de Bhatt e Dosanjh, em conjunto com o trabalho do protagonista, oscilam entre envolver a audiência nessa atmosfera doentia de promiscuidade, violência, desprezo à vida e crime, ainda que a sufoque um tanto, e lhe proporcionar alguma margem de respiro. Aos poucos, Chaubey nos faz perceber que Tommy é, como quase todo viciado, uma vítima de si mesmo, alguém que está no limite, clamando em silêncio por atenção e cuidado. Seu mutismo suicida só é parcialmente quebrado com a entrada em cena da doutora Preet Sahni, vivida por Kareena Kapoor, que sofre as consequências por cumprir seu dever profissional e tentar resgatá-lo.

“Udta Punjab” passa longe de ser somente mais um filme sobre drogas e seus usuários, embalado numa trama que se desenrola a mil por hora, ainda que Bollywood consiga ser muito assertiva quando quer — como parece ter sido o caso. O trabalho de Abhishek Chaubey mergulha numa realidade cruel, que faz vítimas em todos os estratos sociais, mas é, outrossim, um grito de alerta, estridente, mas com poesia, acerca de uma chaga que nunca se fecha, em Punjab ou no morro da Providência. O paradoxo da miséria da condição humana faz o homem tão digno de pena, mas igualmente uma criatura sublime.


Filme: Udta Punjab
Direção:
Abhishek Chaubey
Ano: 2016
Gênero: Drama/Violência
Nota: 8/10