O suspense angustiante e subestimado da Netflix que você ainda não assistiu

O suspense angustiante e subestimado da Netflix que você ainda não assistiu

A vida é um mar proceloso que se atravessa a bordo de uma nau sem casco e é a arte quem pincela com um pouco de beleza essa travessia. A jornada do homem sobre a Terra é plena de surpresas, eventos inesperados que o colhem, trazendo em seu bojo ora prazer, ora situações infaustas, e mesmo sabendo de tudo isso, a gente não deixa nunca de esperar pelos inesperados da vida, ansiando, por óbvio, que nos sejam doces. Contudo, o sentimento de fracasso é, sem sombra de dúvida, um dos venenos mais mortíferos para a vaidosa alma do homem. Fomos apresentados à aventura da existência sem saber o que teríamos a mostrar, se seríamos capazes de ir além do que nos permite a natureza, a Providência, o destino ou seja lá como se possa classificar. Nascemos cheios de questões muito particulares, muito bem guardadas, de dúvidas, de incertezas, de dilemas existenciais, e isso já seria o bastante para definir o homo sapiens como a espécie mais desgraçada da criação. O infeliz do gênero humano precisa que o avalizem quanto ao que ele é ou deixa de ser, e essa é outra tragédia incontornável do ser gente.

Filmes que retratam o homem em ambientes para os quais não fora destinado, seja o céu, seja o mar, costumam elevar a potências inalcançáveis a sensação de que somos mesmo criaturas sujeitas à boa vontade da natureza para poder continuar existindo. Mas esse mal-estar é culpa nossa: é por querer dominar todo o mundo que nos rodeia que a humanidade padece dessas reprimendas, às vezes severas demais. Desde “O Encouraçado Potemkin” (1925), de Serguei Eisenstein, que incorpora a contestação sociopolítica com destemor, as histórias de homens que cruzam o oceano movidos por um ideal — defender o território do país em que nasceram, garantir condições para o desenvolvimento de pesquisas, evitar guerras, mas também dar-lhes início — tomam conta do cinema. Em “Alerta Lobo” (2019), o componente de crítica à forma de se encaminhar procedimentos que visariam ao bem de uma nação vem de forma sutil, mas nem por isso são menos contundentes, em especial no que concerne à relação entre os próprios militares, sempre expostos a cenários de desgaste emocional, agravado pela necessidade de ofício de manter o respeito à hierarquia e às aparências.

Antes um mercado em que só americanos conseguiam entram mais pesadamente, histórias como as contadas em “Alerta Lobo” vão aos poucos se espraiando entre profissionais de nacionalidades diversas. O diretor francês Antonin Baudry se vale de seu roteiro, sobre um técnico de sonar submarino, a fim de se aprofundar nas agonias próprias da rotina de trabalho algumas milhas abaixo da superfície. Baudry talvez já esperasse que um enredo como esse não despertasse o interesse do público de imediato, mas é justamente o uso desse argumento inusitado o que configura a subversão dos clichês e o feliz resultado é uma narrativa ágil, que por sua vez conta com um protagonista especialmente carismático a fim de se estabelecer como sequência de arcos dramáticos que se comunicam e emocionam.

Dispondo do orçamento vultoso (para a França) de US$ 23 milhões, além de um elenco que vale cada centavo, Baudry opta por começar sua história exaltando os esforços do capitão Grandchamp, vivido por Reda Kateb, e do imediato D’Orsi, de Omar Sy, para resgatar um grupamento perdido no litoral sírio. O sucesso da operação depende diretamente da capacidade de seguirem com o plano sem que os destacamentos sírios consigam detectá-los, desafio ainda maior graças ao bombardeiro iraniano que se desloca junto ao submarino que abriga a equipe. Chanteraide, subalterno cujo dom do ouvido absoluto, do “ouvido de ouro”, é imprescindível a fim de distinguir transatlânticos de baleias, por exemplo, se prova fundamental quanto a poupar sua tripulação de exposições desnecessárias, ao passo que pode potencializar os ataques, tudo sem que sejam notados. Num trabalho de destaque, François Civil consegue desdobrar facetas importantes do personagem, guardadas até o meio do filme, e reveladas com o auxílio do envolvimento amoroso com Diane, interpretada por Paula Beer, respiro meio forçado, mas até cativante, que se presta a tirar alguns dos véus meio etéreos sobre a figura de Chanteraide.

A partir de então, o filme entra numa espiral de acontecimentos, numerosos e súbitos, que quase o sufoca, com direito à iminência de uma guerra nuclear que acarretaria prejuízos de longo prazo para a humanidade. Explorando essa possibilidade como alguém que já cruzou o outro lado da trincheira — Baudry se formou em engenharia e já foi diplomata —, o diretor repisa a importância da escala de comando para os militares, que põem Chanteraide na linha, com alguma dificuldade. Sempre dividido entre sua natureza indomável, sem dúvida estimulada pelo talento que só ele tem, e sua vocação para o ofício que abraçara, o personagem de Civil deixa claro que por mais que o filme se permita levar pela atmosfera envolvente dos conflitos subaquáticos, o que se tem aqui é um drama de consciência, tratado com a dignidade e a perspicácia que um tema tão complexo merece. Antonin Baudry se vale da sensação claustrofóbica de uma dezena de homens aprisionados num cilindro de lata a mais de dois quilômetros abaixo da linha d’água para inspirar, por instantes precisos, o sonho de liberdade, mas uma liberdade muito maior que só a do corpo — e que apenas o rebelde Chanteraide, conforme se assiste no desfecho de “Alerta Lobo”, atinge.


Filme: Alerta Lobo
Direção: Antonin Baudry
Ano: 2019
Gênero: Drama/Guerra
Nota: 9/10