Adolescentes cheios de energia veem na escola uma oportunidade a mais a fim de extravasar sua propensão ao desajuste social, aqui ou em qualquer lugar do mundo. Em “Efeito Pigmaleão” (2019), pululam exemplos de estudantes sempre prontos a uma gracinha, a uma competição com aquele colega que julgam inferior, regadas pelo preconceito mais odiento, ainda que nunca se observem consequências desastrosas. Aqui, o ponto é outro.
O efeito Pigmaleão de que trata o filme de Grand Corps Malade e Mehdi Idir faz referência, claro ao personagem da mitologia grega, rei da ilha de Chipre e escultor diletante, cuja estátua fora transformada em mulher de carne de osso pelas mãos de Afrodite, a deusa do amor, sem que ele soubesse. Transpondo-se a história para a psicopedagogia, a interpretação mais precisa é a que alude à valorização do aluno, a despeito de suas limitações cognitivas ou de sua personalidade truculenta. Fazendo uso de uma dose homeopática de negacionismo, ignora-se um problema, por maior que seja, obedecendo-se a um prazo e mantendo-se os responsáveis pela experiência cientes dessa medida, a fim de ver se o paciente reage.
Não me parece o método mais adequado a se aplicar às turmas de um colégio em Saint-Denis, subúrbio ao norte de Paris, sobretudo as da nona série do ensino fundamental, compostas por estudantes com idades entre quinze e dezenove (!) anos, quase todos negros e árabes, filhos de imigrantes africanos em geral e do Magrebe, em particular, mormente da Argélia. A Argélia é justamente a pátria da família de Samia Zibra, a nova conselheira escolar destacada para administrar as atividades letivas da instituição, personagem de Zita Hanro. Tudo o que acontece na escola — e não só em sala de aula — passa por seu minucioso escrutínio, e é mediante sua perspectiva que o público toma pé do muito a ser feito para que o colégio possa começar a ter a aura do que deveria ser, um lugar voltado ao conhecimento, à curiosidade intelectual, tendo a disciplina e o respeito a hierarquia por esteio. Algo como quis pregar a filosofia positivista de Auguste Comte (1798-1857), tão detratada e tão comodamente esquecida porque tão exata e tão necessária.
Zibra não tarda a identificar em Yanis a mais perfeita tradução do fracasso da rede de educação pública da França. Interpretado por Liam Pierron — vencedor do César de Melhor Ator Revelação, com toda a justiça —, Yanis, aos quinze anos, dispõe da inteligência indomável de que Nietzsche falou certa feita. O garoto não sabe o que fazer com sua agilidade de raciocínio ou seu pendor para o combate às injustiças, e tampouco seu desassombro diante da vida lhe é de algum valor — pelo contrário, é fonte de mais problemas para ele, justamente pela falta de um canal adequado. Yanis é mais uma vítima de si mesmo, que poderia ser resgatada caso houvesse adultos preparados por perto, ainda que só na escola. Mas nem isso; os professores mal se importam em dar suas aulas e alguns, como Dylan e Moussa, de Alban Ivanov e Moussa Mansaly, respectivamente, estão mesmo é interessados em vencer o campeonato (de que só eles sabem, por evidente) de quem ofende os alunos mais desprotegidos com maior originalidade. O que se segue é um festival constrangedor e asqueroso de insultos étnicos e provocações infantis, a exemplo dos que dirigem ao aluno asiático que se atrasa para a primeira aula. Reproduzindo visões de mundo desabridamente neonazifascistas, Dylan, aparentemente judeu, e Moussa, negro, são dois ignorantes que poderiam trabalhar em qualquer meio, exceto em atividades ligadas à educação — e muito menos à educação de crianças e adolescentes. O comportamento dos dois revolta de tal maneira que se passa a torcer pela punição urgente dos funcionários, de preferência que deixem a escola. O que acaba ocorrendo, mas só com Dylan, e por motivos muito mais graves.
O ciclo de abusos perpetrados dos professores para os alunos não raro se inverte e quem deveria zelar pelo bem-estar dos mais vulneráveis e pelo decoro institucional na escola experimenta do próprio veneno, como Thierry, o professor de história vivido por Antoine Reinartz, chamado por todos — inclusive, claro, pelos professores — de Donald Trump e Van Gogh. A sátira política acertadamente passa longe e só o que se ridiculariza é a tez excessivamente alva e o cabelo arruivascado de Thierry, um dos poucos caucasianos da escola, frise-se. Com passagens como essa, Malade e Idir deixam clara a intenção de emular os besteiróis americanos do gênero, quando poderiam muito bem aproveitar a chance e tecer as críticas sobre os assuntos que se propuseram a registrar, sem prejuízo do humor, como fizera Kheiron em “Sementes Podres” (2018).
O filme começa a dar uma no cravo, outra na ferradura, insinuando que o desenvolvimento educacional é mesmo sujeito a iniciativas exitosas — como a do professor de música, de Nicolas Chupin, que consegue a proeza de fazer com que um bando de desafinados aprenda a tocar flauta (doce, como se procede com as crianças pequenas) e ensaie um pequeno concerto pós-moderno —, ao passo que sempre pode dar seus tropeços, conforme o que se assiste das aulas de educação física, quando o professor vivido por Michael C. Pizzuto, meio gordo para a função, se resolve a popularizar uma nova modalidade de futebol. Talvez fosse o caso de um pouco mais de ortodoxia.
Enquanto participa de reuniões com pais de alunos que beiram o absurdo, Zibra descobre em Yanis uma incômoda semelhança, e o desfecho de “Efeito Pigmaleão” deixa um fio de esperança ao estreitar os caminhos dessas duas figuras, como se a conselheira algum dia fosse capaz de arrastar com seu exemplo e fizesse seus pupilos entenderem que são os únicos responsáveis por sua sorte, vivam como e com quem viverem. Mensagem de um humanismo liricamente transformador que, lastimavelmente, perde-se em meio a tanta comicidade sem graça.
Filme: Efeito Pigmaleão
Direção: Grand Corps Malade e Mehdi Idir
Ano: 2019
Gênero: Drama/Comédia