Chupa que a vida é doce

Chupa que a vida é doce

Um casal de vira-latas caramelos enxerta na esquina. Crianças atiram pedras. Tem um gari que gira. Tem um gari que agora dança e gira, tendo uma vassoura como parceira guia. Tamanha agitação, a essa hora do dia, só me desconcerta. De certa mesma, somente a constatação de que navego à deriva nas ondas bravias, derivadas de um oceano de desconhecimento. Da janela, espio o homem preto, macilento e indiscreto que, tendo o céu plúmbeo como teto, tateia o asfalto com os seus pés afrodescendentes escondidos em coturnos surrados; sorri a lhe faltarem os dentes e se veste com as cores oficiais da prefeitura. “Chupa que a vida é doce, criatura”, ele requebra enquanto canta.

Não conheço esse samba. Os companheiros de faxina organizam um semicírculo alaranjado, batucam no próprio corpo os seus instrumentos imaginários e fazem troça do dançarino carismático. A farra alheia ocupa-me a manhã vazia. Segunda-feira é dose. O leão do imposto de renda ruge nos calcanhares. Toneladas de lixo aguardam para serem varridas. Luxo mesmo é ser feliz com quase nada. No fim das contas, tudo o que realmente importa é sonho não dedutível, é felicidade não tributável.

O meu coração instável vai endurecendo aos poucos. A ameaça da variante Ômicron. A gasolina que volta a subir. A crise diplomática entre a Rússia e a Ucrânia. O meu crânio que lateja. Vai chover, não resta dúvida. Nenhum daqueles homens lá embaixo se importa que a sujeira das sarjetas fique ainda mais pesada ao cabo da vassoura. Um trio inquietante de falsas louras passa pelo grupo e é ovacionada com exagero. As jovens com saias acima do joelho entreolham-se, coram e sorriem para lá de desconcertadas. Elas sabem que a coisa certa é que os homens não mexam com as mulheres de uma forma tão vulgar. Contudo, dentro de um cenário nacional tão pobre, tão hostil, ninguém dá a mínima para os incômodos da ética e para os melindres de gênero: nem as mocinhas faceiras com tinta nos cabelos, nem os trabalhadores semianalfabetos da secretaria municipal de limpeza urbana.

É quase certo que eu nunca sambe no meio da rua. Eu não sou do samba. Eu não sei quem eu sou. Só sei que não sou um bamba. Eu não relevo os dramas do planeta com tanta facilidade. Sou sisudo demais para desengatar os quadris. Recostado nos pálidos lambris, assisto ao carnaval fora de época daquele grupelho contente que varre, que brinca e que assedia jovens mulheres a caminho da feira. Bate na minha mente aquela inconteste banzeira. São as manobras militares dos neurônios descontentes sob uma tempestade de sinapses. No ápice da algazarra, começa a pingar grosso sobre o asfalto candente. Eu avisei que choveria.

Alheios aos meus chiliques indigentes, os homens da limpeza urbana gritam e se agitam e engrossam o coro de outra canção inédita. Eu não conheço aquele samba. Sujar. Varrer. Limpar. Deixar as ruas da cidade um verdadeiro brinco, para a alegria do prefeito e dos puxa-sacos; numa sequência que parece tão lógica quanto nascer, crescer, ter filhos — ou não — ficar velho e ser pego no contrapé pela morte, a única certeza que existe, é o que se diz.

O meu erro é me importar além da conta. O gozo é livre. A graça existe. Diverte-se quem pode. Nem sempre é uma questão de querer, eu sei. Um gari que samba. Um guru que se mata. Um guri que brinca entre os escombros. Um mudo pássaro de desencanto que pousa sobre os meus ombros. Eu gosto de ouvir blues. Eu gosto de ouvir. Eu gosto. Eu.

Um casal de vira-latas caramelos permanece estático, engatados pelas genitálias. Isso não é amor. Isso é uma questão de sobrevivência.